O Amargo Santo da Purificação

O grupo surgido há 32 anos no Rio Grande do Sul retrata a vida e o pensamento do revolucionário Carlos Marighella (1911-69), que lutou contra a ditadura militar (1964-85). A criação coletiva apropria-se do espaço ao ar livre com movimentos corais, máscaras, percussão ao vivo e demais elementos afro-brasileiros. A inspiração vem do cineasta Glauber Rocha: tratamento documental e abordagem épica ao aspirar à liberdade e à justiça. Um dos mais premiados e respeitados coletivos de teatro de rua do Brasil comunica sua visão alegórica e barroca da vida, paixão e morte de um sonhador. O Ói Nóis surge em 1978 propondo-se uma renovação radical da linguagem cênica. E assim segue, vendo o teatro como função social para desvelar e analisar a realidade.

Arrumadinho

O capitalismo ganha uma crítica bem-humorada do grupo da cidade-sede do Festival. Um cortejo profético anuncia o jogo que seis gerentes de venda estabelecem com o público ao ar livre. O espetáculo de 2007 questiona o homem moderno e o que pode haver de patético na relação do trabalho com o sonho de prosperidade. A Trupe Olho da Rua surgiu em 2002 com o objetivo de pesquisar, exercitar e difundir o gênero, suas dimensões artística e cidadã. As referências são a linguagem do palhaço e a música de bases melódica e percussiva. O núcleo montou nove peças afeitas à farsa, ao circo, ao épico e ao musical. Organizou seis edições da sua Caravana pelo Mundaréu, percorrendo os litorais de SP e RJ. Foi parceiro do encontro santista A Rua é o Palco, de 2008. E idealizador da 1ª Mostra de Teatro Olho da Rua, de 2009, na qual recebeu seus pares locais e de outros Estados.

Hecho en el Peru,<br />Vitrinas para un Museo de la Memoria

Prestes a completar 40 anos, em 2011, o grupo reconhecido pela ênfase política de suas criações conjuga as formas da instalação plástica e da ação dramática. Durante duas horas, o espectador percorre uma galeria com seis vitrines nas quais pode fazer o seu roteiro: em quais se ater ou mesmo em todas. A cada nicho, uma atriz ou ator relaciona-se com objetos ou interage. Seis presenças sublinham ideias, atos e perfis heterogêneos de uma matriz comum, tal qual a marca de produto. Entre as reflexões lançadas, estão o temor e a esperança que a fé emana, a maquinação oculta do terror de Estado e o imaginário indígena que a dominação colonial e sua herdeira, a republicana, compilaram. Sediado em Lima, o Yuyachkani é um dos expoentes do teatro latino-americano premiado e requisitado no circuito internacional. Seu nome, em quéchua, significa “estou a pensar, estou a recordar”.

Vida

“Não fosse isso e era menos/ não fosse tanto e era quase”. Como os versos do escritor paranaense Paulo Leminski (1944-93), a companhia conterrânea relativiza as certezas. Toma a curta existência dele e a vasta obra em poesia, prosa, ensaios, traduções, letras de música, etc., para abrir outras janelas ao público que o conheça ou não. Exilados num lugar imaginário, dois homens e duas mulheres fazem parte de uma banda que ensaia para comemorar o jubileu da cidade. Eles convivem entre si e revelam comportamentos e conflitos pessoais. O espetáculo de 2010 traz figuras prosaicas às quais não faltam humor, sensibilidade e vontade de transformação. O núcleo colaborativo iniciou atividades em 1999, em Curitiba, onde foi premiado. Fez temporadas em São Paulo e no Rio. E viajou a países como França e Colômbia. O diretor Marcio Abreu dirigiu o ator Luis Melo em dois projetos paralelos.

Gigantes pela Própria Natureza

O espetáculo recria artisticamente o sincretismo das encanterias, cerimônias semelhantes à pajelança nas quais seres espirituais denominados moços encarnam em médiuns, os ditos aparelhos. Como em trabalhos anteriores, a companhia do Rio de Janeiro, adepta do que define como circo dramático, lança mão de repertório musical popular (tradições indígenas, africanas e europeias) e das danças que utilizam técnicas sobre pernas de pau. O roteiro propõe explorar coisas, pessoas, plantas, bichos e invenções tomando Albert Einstein e Mário de Andrade por faróis. Profissionais da companhia criada em 1990 integram-se à Orquestra Itinerante de Rua sobre Pernas de Pau, formada por jovens aprendizes de comunidades cariocas de baixa renda. Entre os espetáculos anteriores com a linguagem peculiar da Mystérios e Novidades, estão Pajelança (2000), Navelouca (2001) e Cíclopes (2007), sempre inspirados na musicalidade e no gestual dos antigos atores e tocadores populares.

Urtain

Ele foi um boxeador tão medíocre quanto a percepção sobre a Espanha franquista dos anos 1960, 1970. O basco José Manuel Ibar, também apelidado “Morrosko de Cestona” ou “Urtain”, colheu fama e caiu nas graças da mídia e dos políticos. Em 1992, a quatro dias de iniciar os Jogos Olímpicos de Barcelona, cometeu suicídio saltando do 11º andar de um prédio. Esse é o material dramático trabalhado pelos criadores. Juan Cavestany concebeu um roteiro cinematográfico de origem que acabou vingando como teatro, arte tão visceral quanto a trajetória do protagonista. Um caminho marcado pelo sangue e pela política, desejo atormentado e possibilidade sempre fugaz de êxito. A premiada Compañía Animalario foi fundada em 1996 com o intuito de resgatar o Teatro de Grupo dos anos 1980. O espetáculo foi recebido como o grande destaque da temporada teatral de 2009 na Espanha e agora inicia circulação internacional.

Filhotes da Amazônia

O espetáculo mais recente da companhia, de 2009, ilustra as relações entre pais e filhos de qualquer espécie animal – e humana por extensão. O chefe de uma família indígena narra contos e lendas às crianças que envolvem bichos do ar, do rio e da terra. Um pássaro tenta aprender a voar com o apoio da mãe; o filhote de uma família de sapos cantores “desafina”; uma piranha come tudo o que vê pela frente, e assim por diante. São quadros não lineares, com pouco uso da palavra e forte impacto nas imagens (o cenário é uma tartaruga gigante que serve de palco para a manipulação de todos os bonecos). A simbiose boneco-ator também é um dos elementos característicos da companhia fundada em São Paulo há 26 anos. A Pia Fraus (o nome em latim significa “uma mentira contada com boas intenções”) recebeu vários prêmios e circulou por 19 países nos principais festivais nacionais e internacionais.

Todos los Grandes Gobiernos<br />han Evitado el Teatro Íntimo

Nesta outra ponta do díptico sobre o norueguês Henrik Ibsen – o Mirada também traz El Desarrollo de la Civilización Venidera -, o diretor insiste que a questão de gênero pesa bastante na engrenagem do mundo contemporâneo, apesar das conquistas da mulher. A montagem de 2009 aponta que ainda existem muitas contas pendentes entre indivíduo e tecido social. É a versão de Veronese para Hedda Glaber, a personagem-título que confronta regras do pensamento patriarcal numa época, o final do século XIX, em que o instinto e o desejo eram velados pela hipocrisia. Veronese foi um dos fundadores do El Periférico de Objetos (1989), grupo que estreitou teatro de animação, performance e artes plásticas, ele seguiu voos autônomos. Profícuo, tornou-se sinônimo de teatro argentino dos mais inquietos e ousados em termos formais e temáticos.

Savana Glacial

Um escritor enreda a mulher e terceiros em trama que tensiona realidade e ficção explorando o conceito do teatro dentro do teatro. Ao milagre da multiplicação dos pães corresponde a forma como figuras coadjuvantes são conectadas à história: uma maquiadora e um entregador de loja também compartilham o apartamento para o qual um casal mudou-se há pouco, esperançoso em resgatar a vida amorosa após um suposto acidente. O absurdo avança como um processo cinematográfico de edição, um jogo de memória elaborado em conjunto e vindo à luz em 2010. Fundado em 2007, no Rio de Janeiro, o Grupo Físico de Teatro deseja firmar uma identidade artística intensificando a pesquisa de linguagem da qual os primeiros passos dão notícias. Para o texto desta montagem o grupo convidou Jô Bilac, nome emergente da dramaturgia contemporânea do Rio de Janeiro.

Policarpo Quaresma

O romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto (1881-1922) é emblemático ao condensar a verve nativista e ufanista do começo da República. O anti-herói simboliza o homem-nação. Toma para si o ideal de um país regido pelo bem-estar de seu povo e deposita esperanças na força civilizatória do Estado. Ao teatralizar a obra, Antunes Filho, 28 anos à frente do CPT, correlaciona linguagens diversas como a commedia dell’arte, o circo, o teatro de revista e as operetas. O premiado e respeitado diretor foi assistente de encenadores estrangeiros na fase moderna do Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, nos anos 1950. Hoje, as assinaturas cênica, dramatúrgica e pedagógica de Antunes tornaram-se referenciais para a arte do ator.

Passport

Franz Kafka é a principal referência literária do dramaturgo caraquenho em sua peça de 1988 que ganhou duas montagens três anos depois, na capital do país e em Madri. A produção apresentada no Mirada é de 2003 e traz uma mulher no papel central, e não um homem, como na versão original. Numa estação de trem, em algum país esquecido, uma passageira sofre arbitrariedades à maneira do romance O Processo. Um soldado e um oficial agem com truculência com a imigrante que, parece, não fala sua língua. Os excessos geram confusões e absurdos. A incomunicabilidade avança com a desconfiança presumida. Um clima tomado por forças ocultas que amordaçam, cegam e destroem o indivíduo, afrontando os direitos humanos. Com formação que inclui passagens por EUA e França, Gustavo Ott despontou como dramaturgo no início dos anos 1980. Ele também é jornalista e suas peças foram traduzidas para o inglês, italiano, alemão, francês, russo, japonês etc.

O Mundo Tá Virado, Tá no Vai ou Não Vai.<br />Uma Banda Pendurada, a Outra em Breve Cai

A ingenuidade pode ser irmã da esperteza. O núcleo de Sergipe equilibra-se no arame entre instâncias demasiado humanas ao narrar três histórias curtas extraídas da literatura de cordel. O pano de fundo é a critica à associação automática entre as culturas popular e de massa – o balaio desta é o consumo e o daquela, o suprassumo. Em 33 anos de dedicação contínua ao teatro de rua, os criadores se dizem conscientes de que são necessários novos procedimentos na pesquisa do cômico. Fugir da convenção ao visitar os universos da cultura popular, do cordel e do folclore. Afinal, foi o princípio da resistência que fez esses artistas chegarem até aqui, mesmo diante da precariedade econômica que significa fazer arte em alguns cantos do Nordeste. De 1977 para cá, o Imbuaça cruzou o Brasil de norte a sul e já se apresentou em países como Equador, Cuba, México e Portugal.

O Idiota – Uma Novela Teatral

A produção deste ano reúne criadores ligados ao Teatro de Grupo em São Paulo. A recriação do clássico de Dostoiévski teve boa repercussão crítica e ingressos esgotados. No Brasil, o substantivo “novela” é mais associado à trama em episódios na TV do que à narrativa literária. O subtítulo refere-se às três partes, uma por noite, em que o espectador pode acompanhar a adaptação. Michkin é o príncipe despido de dotes, um visionário misto de Cristo e Dom Quixote. Ele retorna à Rússia após tratar de epilepsia. Do trem à estadia, envolve-se em novelo amoroso, financista e sagrado. Quem ancora o projeto é a Mundana Companhia, fundada em 2007. A diretora é da Companhia Livre. Ela e outros nomes do projeto passaram pelo histórico Grupo Oficina. Vertigem e Companhia São Jorge de Variedades também estão representados.

O Cabra que Matou as Cabras

Trata-se de uma livre adaptação do clássico francês medieval e universal A Farsa do Advogado Pathelin, de autor desconhecido. O espetáculo de 2004 recorre ao cordel nordestino, esquetes de picadeiro, fábulas, ditos e outras variantes da cultura popular. Um advogado vigarista, que sobrevive dando golpes nos clientes, se vê envolvido no caso de assassinatos de cabras e bodes. Uma trama cheia de traições, trapaças e reviravoltas. Esposa maliciosa engana o marido advogado que engana comerciante ganancioso que engana empregado que engana juiz que quer enganar todo mundo. Por trás do riso, o espelho das relações de poder e de hierarquia implícitas no cotidiano. A Teatro Nu Escuro completa 14 anos com sede em Goiás, onde mantém espaço para espetáculos, ensaios e acervo. Nesse percurso, ajudou a formar novos espectadores, recebeu premiações locais e já circulou por outros Estados com seu repertório.

Fiesta

A criação coletiva retrata a estupidez e o vazio dominantes na sociedade pós-ditadura chilena (1973-1990). Na sala de (mal) estar de uma casa, seis pessoas revelam-se cada uma delas em sua ilha. São talvez quatro horas da madrugada, acabou a bebida, a música, ninguém dança e elas tampouco têm ideia do que celebram. O marasmo e o silêncio dão lugar ao riso postiço, aos diálogos fugazes. Algumas apelam a “shows” individuais na ânsia por dissimular o desconcerto. O espetáculo propõe uma partitura feita de movimentos, atmosferas, sensações e ruídos. Em suma, os malefícios da inconsciência, da desmemória. Trinidad González dirige o projeto paralelo a seu grupo, o Teatro en el Blanco – premiado núcleo surgido na cena chilena em 2004 e que o Brasil conheceu há pouco com Neva e Diciembre, nos quais ela atua sob encenação de Guillermo Calderón.

Espoleta

O tom desse musical para crianças é a mistura entre o popular e o erudito com atalho para o circo-teatro, uma casamento típico da cultura pelo interior do país. Samba e ópera vão à mesma roda de brincadeiras para falar de amor e arte. O texto conta as confusões do criado Espoleta. Ele promete ao desafinado patrão uma ópera em seu castelo. Mas, tentado a economizar algumas moedas, contrata uma trupe de picadeiro para a tal apresentação. O espectador em formação acompanha um jeito brasileiro de criar e, sobretudo, de mesclar influências. São 11 atores-músicos que não saem de cena, cantando e tocando ao vivo canções que flertam com a MPB. A Banda Mirim surgiu 2004 com o show Felizardo, que depois virou teatro e inovou no jeito original de contar histórias. Chega à quarta peça que também caiu nas graças do público e da crítica.

Espía a una Mujer que se Mata

O diretor sempre dá um jeito de falar do teatro dentro do teatro em suas montagens. A versão para Tio Vânia, de Anton Tchekhov, saúda essa arte milenar de forma ímpar. Como em Ibsen, o cultuado encenador partilha a paixão pelos clássicos e tenta lê-lo de outro modo ao espectador atual. A peça trata das relações entre membros de uma família de origem rural e os que vivem na cidade e a difícil convivência de pessoas tão distintas. Cofundador do El Periférico de Objetos (1989), grupo que estreitou laços do teatro de animação com performance e artes plásticas, ele seguiu voos autônomos. Com uma vasta produção, Veronese tornou-se sinônimo da cena argentina das mais inquietas e ousadas em termos formais e temáticos, cativo em festivais pelo mundo.

El Foc del Mar

Ao sugerir a imagem do fogo do mar, o título remete às raízes mediterrâneas do grupo que há 27 anos alia magnetismo e colorido das festas populares à ousadia formal em criações de grande formato ao ar livre. A oportunidade de assistir a uma obra do repertório, de 1994, permite conferir o domínio de linguagem e a tentativa permanente de escapar ao virtuosismo. O roteiro visita lendas e costumes valencianos, dispensa a palavra, assume a pirotecnia e interfere na percepção dos passantes em seu cotidiano. A obra quer ressignificar, dar a ver com outros olhos e apropriação dionisíaca do espaço público. O Xarxa é militante quanto à inovação permanente para a rua combinada a recursos de multimídia. A acolhida do núcleo em mais de 40 países dá conta da universalidade de seu trabalho.

El Desarrollo de la Civilización Venidera

Uma norueguesa de 26 anos, casada, três filhos, escandalizou a burguesia do final do século XIX ao contrariar “deveres” de esposa e mãe. Abandonou o lar com rumorosa batida de porta. O gesto de Nora, a protagonista de Henrik Ibsen, pode soar anacrônico aos dias de hoje. Mas o encenador e dramaturgo cava fundo ao refletir o quanto a questão de gênero ainda é determinante. Estão aí, na ordem do dia, as afrontas aos direitos humanos. A versão de 2009 equilibra o peso dos demais personagens centrais, marido, agiota, médio e amiga. Dinheiro é o que os move e estanca. O espaço cênico diminuto da casa corresponde à cenografia de outro Ibsen por Veronese, Todos los Grandes Gobiernos han Evitado el Teatro Íntimo, que também integra o Mirada.

Nada del Amor me Produce Envidia

O pecado capital da inveja perpassa o monólogo. Um melodrama musical em que a protagonista narra como ela foi pivô de um episódio que envolveu duas rainhas do rádio dos anos 30 na Argentina: Eva Perón e Libertad Lamarque. O cineasta e autor Santiago Loza toma como gancho a mítica bofetada que Libertad teria dado em Eva. O enredo trata do dilema de uma costureira de bairro, fã de cantarolar a antiperonista Libertad o tempo todo. Certo dia, a própria artista baixa em sua oficina para encomendar-lhe um vestido. Atraída pela súbita fama da moça, Eva também vai atrás e pede exclusividade para o mesmo vestido a ser finalizado. A aparente disputa traz à tona visões sobre questões da memória política e social do país. A obra de 2008 marcou a estreia do também cineasta Diego Lerman como diretor teatral. Nascido em 1976, ele integra a boa fase cinematográfica do país. Filmou Tan de Repente (2002) e La Mirada Invisible, este exibido no Festival de Cannes este ano.

Mujeres Terribles

A ebulição intelectual da Argentina entre 1960 e 1970 serve como pano de fundo às vozes e olhares literários de Alejandra Pizarnik (1936-1972) e Silvina Ocampo (1903-1994). As duas escritoras pertenciam a gerações e classes sociais distintas. Costurada a quatro mãos, a dramaturgia assimila traços biográficos para juntá-las ainda mais no plano da ficção. Na vida real, ambas estudaram em Paris, por exemplo. Alejandra suicidou-se aos 36 anos. Silvina era mulher de Adolfo Bioy Casares. Contos, poemas, diários e cartas são entrelaçados a passagens históricas da nação que sempre olha para si por meio da arte, suas peculiaridades nas entrelinhas. Com personagens ora cúmplices ora dissonantes, a produção estreou este ano. A atriz e diretora Lía Jelín conciliou a formação internacional em dança com a trajetória teatral desde 1960.

Mi Muñequita

Gabriel Calderón contava 17 anos quando escreveu o enredo que se passa em um ambiente opressivo e expõe a perversidade adulta sob a perspectiva de uma menina e sua boneca. Em 2004, aos 21 anos, seu texto foi acolhido num dos palcos tradicionais de Montevidéu, o Teatro Circular, atraindo o público jovem. Também codiretor e um dos intérpretes, o autor premiado quer mostrar a intimidade através de uma lente deformante: segredos sujos de pessoas condenadas a repetir-se. No olho desse redemoinho de entorno cruel, a protagonista será, ao lado do inseparável brinquedo, uma nada cândida sobrevivente. A irreverência e a contradição alimentam a Complot, companhia fundada há cinco anos por Calderón e o coreógrafo Martín Inthamoussú. Desde 2007, soma a dramaturga Mariana Percovich, nome destacado no panorama recente do país.

Lote 77

Alguns sinais característicos do gênero latino-americano são colocados em xeque na história concebida pelo ator, diretor e dramaturgo. A masculinidade é dissecada sob o ponto de vista de quem vem do interior, um atalho biográfico para o idealizador Marcelo Mininno nascido em Salto e habitante da capital do país desde os 18 anos. O texto prospecta, afinal, como se constrói um varão. Três sujeitos envolvidos na criação, seleção e classificação de gado bovino em lotes de venda experimentam um processo de autoconhecimento ao olhos do outro. A montagem promove interface rural e urbana. Estreou em 2008 após um ano de investigação junto ao elenco convidado pelo autor. A obra também recorre a feitos históricos destacados nos últimos trinta anos da República Argentina. Mininno já atuou em mais de 25 produções. Por Lote 77, conquistou prêmios de referência em seu país. Atualmente, é professor da Escola Metropolitana de Arte Dramática.

Los Santos Inocentes

Formado em 1994, o coletivo de Bogotá estende as artes cênicas a territórios do vídeo, música e artes plásticas, entre outros, para jogar com o imaginário social. A produção de 2010 é exemplar disso. Às vésperas do Réveillon de 2009, o Mapa Teatro rumou para a cidade de Guapi, na costa do país, beirando o Pacífico. O objetivo: acompanhar o Dia dos Santos Inocentes, 28 de dezembro, quando as ruas são tomadas por mascarados que dão chibatadas a quem lhe cruzar o caminho, tal Herodes perseguindo crianças, reza a crença local. Um testemunho da barbárie e autoflagelos. As imagens capturadas intercalam cenas ao vivo de um fim de festa. Narradores e artistas populares vindos da terra do rebu espelham a guerra colombiana entre realidade e ficção.

La Razón Blindada

Todo domingo, ao entardecer, eles se encontram para imaginar outra realidade possível. Perseguidos por manifestar consciência crítica, dois presos políticos agarram-se às reinações de Quixote e Sancho Pança, o fio da meada para sobreviver, nesta montagem de 2005. Trocam fábulas entre si para, quem sabe, transpor os muros de segurança máxima feito o herói de Cervantes a confrontar monstros e moinhos gigantes. O Malayerba foi criado em Quito em 1979, formado por criadores vindos da Argentina e Espanha, entre eles o ator, diretor e dramaturgo Arístides Vargas e a atriz María del Rosario “Charo” Francés. O núcleo circula com frequencia por Europa, Estados Unidos e América do Sul, tendo se apresentado inclusive no Brasil. Seus espetáculos abarcam a rica diversidade cultural e a complexa história do Equador, assim como questões de migração, exílio, violência política e individual e memória coletiva.

La Omisión de la Familia Coleman

Um dos fenômenos de público e crítica de Buenos Aires, onde está em cartaz desde 2005 e já fez turnê por Saravejo, Irlanda, Espanha e Brasil (festivais em Porto Alegre, Brasília e Londrina), o espetáculo aplica tons absurdos e realistas ao retratar o processo de desmanche de uma família. O adoecimento da avó, alicerce da casa, fragiliza de vez as relações com a filha e os quatro netos. É como se o espectador estivesse sob o mesmo teto desses moradores afetados pela miséria material. O espetáculo foi bastante associado aos reflexos do baque econômico que se abateu sobre o país em 2001. O texto é de Claudio Tolcachir, um dos fundadores da Timbre 4, em 1999, na qual também ministra aulas em sua sede no bairro de Boedo. Muitos núcleos do circuito independente da cidade surgiram nessa escola.

La Odisea

O grupo associa a narrativa épica do grego Homero à perseguição atual em países que adotam lei anti-imigração. Milhões de Ulisses abandonam suas terras em busca de paraísos quase sempre inóspitos. No original, o herói põe fim aos desmanches material e moral de Ítaca, onde vai resgatar a mulher e os filhos 20 anos depois de partir. A aventura é um testemunho de processos históricos, políticos e sociais. Memória e presente versus xenofobia. O sentido de urgência se expressa por meio de fontes da cultura andina. Criado em 1991, o Teatro de Los Andes abriga artistas de outros países: Argentina, Brasil e Itália. Sua sede fica numa comunidade próxima a Sucre, onde ensaia, se apresenta, realiza encontros e oficinas. Desde 1995, o núcleo edita a revista El Tonto del Pueblo.

Jerusalém

Sete sobreviventes estão sitiados numa cidade tomada por um exército. O pesadelo do Holocausto é sugerido nas entrelinhas, mas o desencanto pela violência de guerra é exibida nos próprios telejornais de hoje. A partir dessa percepção, o grupo leva à cena a sua versão de 2008 para o romance homônimo do compatriota Gonçalo M. Tavares. No enredo, a aflição diante do futuro é diagnosticada por um médico empenhado em escrever sobre a história do horror no seio da humanidade. O desafio do grupo é aproximar o espectador da loucura e da escuridão latentes. Acordar consciências sobre as atrocidades sem prejuízo da ironia. O Teatro O Bando foi fundado em 1974. É uma das mais antigas cooperativas culturais do país. A reputação mundial veio da singularidade em colocar a pesquisa artística no plano das participações cívica e comunitária a partir da sua sede no do Vale dos Barris, em Palmela.

In on It

Premiado no Rio de Janeiro, em 2009, e em circulação pelo país, o projeto é uma feliz triangulação da maturidade artística de Emilio de Mello e Fernando Eiras com o diretor Enrique Diaz em trabalho paralelo à Companhia dos Atores. Dois atores, duas cadeiras, um casaco, um lenço, um molho de chaves e o desenho de luz em palco nu como que bastam para defender a narrativa do autor canadense. Um homem escreve uma peça sobre alguém que sofre acidente, dois amantes vêem seu caso terminar e dois homens contam essa história. São dez personagens costurados em três camadas: a peça (escrita por um dos personagens), o espetáculo e o passado. A peça é a historia de Ray, mais “teatral” do que os demais planos. O espetáculo é o que acontece aqui e agora. O passado fala de como a relação dos protagonistas se desenvolveu. Uma estrutura metalinguística e um poético jogo de atuar levam a trama a um desfecho surpreendente.

De Monstruos y Prodígios: la Historia de los Castrati

O castrato é um cantor com timbre e tessitura de voz peculiares, registro soprano. Para alcançá-lo, era comum na Europa do século XVI que os homens fossem castrados ainda na infância. A partir desse fenômeno artístico, social e cultural o grupo conceitua o que define como teatro-ópera, em que o ator lança mão de recursos da música e da dança para tratar da história de meninos pobres alçados a estrelas das frívolas cortes. Por meio da conferência dramatizada de um siamês de duas cabeças, que é cirurgião e cronista, o público é conduzido a uma viagem inusitada: do barroco, no início do século XVII, aos dias tecnológicos de hoje. Em atividade desde 1977, o Teatro de Ciertos Habitantes colhe prêmios e apresentações em importantes festivais nos cinco continentes. Entre os países visitados estão México, Alemanha, Cingapura, Egito, Argélia, Croácia e Brasil.

Este Lado para Cima – Isto Não é um Espetáculo

Um dos grupos mais promissores da geração de teatro de rua surgida nesta década em São Paulo mostra seu ponto de vista sobre a euforia econômica que o Brasil atravessa. Os habitantes de uma cidade recém surgida em nome da ordem e do progresso têm o sonho da felicidade abortado por uma crise financeira. Para combatê-la, as autoridades constroem o “mais avançado artefato da tecnologia humana”, a “Bolha”, que do céu vigiará tudo e a todos. O espetáculo que estreia em agosto discute com humor anárquico o poder do mercado e o controle exercido sobre as relações humanas. A Brava Companhia foi fundada na zona sul paulistana em 1998, com outro nome, e obteve mais repercussão pela consistência de linguagem ao ocupar espaços abertos ou não convencionais com a premiada montagem de A Brava (2008), um épico sobre a heroína Joana D’Arc.