PONTO DIGITAL MIRADA

Histórias cruzadas, barreiras invisíveis
Uma única personagem pode ser vista em diferentes espetáculos.
Por André Venancio, Sesc SP
Início do espetáculo Zona!, dos paulistas d’O Coletivo
CENA 1. Quando a catraia sai da zona portuária de Santos e, rumo a alto mar, atravessa o canal 6 para dar início ao espetáculo Zona!, de todas as personagens que ocupam a pequena embarcação, um chama a atenção de quem observa: um rapaz magro, de uns trinta e cinco anos talvez, mantém os olhos atentos em direção ao bêbado, que esbraveja ao horizonte seu ódio a um certo Gringo. Apesar da armação grossa dos óculos que emolduram seu olhar, as expressões faciais da personagem conduzem e interferem no jogo cênico executado pelos outros atores. Ela não tem texto, nem nome. Em uma situação de conflito, no entanto, um dos atores cai bruscamente sobre ele, arrancando seus óculos que se divide em duas lupas ao chão. “Foi mal, alemão”, debocha o bêbado.
Cena de Psico/Embutidos, da Compañia Titular de Teatro de la Universidad Veracruzana
CENA 2. Na área de convivência do Sesc Santos, uma estrutura formada por cubos de ferros empilhados atrai os olhares. No centro, uma espécie de tobogã, ao soar de um alarme, conduz as personagens um a um entre os cubos. Lá no alto, uma das atrizes conversa com o rapaz que, outrora, teve os óculos pisoteados na zona. “Você se sente à vontade para mostrar o seu corpo?” Em resposta, ele tira a camisa. Começa o espetáculo Psico/Embutidos.
Cena do espetáculo Fugit, dos espanhóis da Cia Kamchàtka
CENA 3. Ainda sem os óculos, o rapaz corre em direção ao bonde. Assustado, parece fugir de alguém prestes a alcançá-lo. O bonde avança e, após algum minutos, freia bruscamente frente a uma construção abandonada, cuja fachada está encoberta por madeiras. No alto, o jovem vê com alívio a presença de um rosto amigo, que acena. Ele entra por uma fresta na madeira e abraça o companheiro. Juntos, eles e mais cerca de 20 pessoas iniciam a fuga proposta no espetáculo Fugit.
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O rapaz sem os óculos talvez seja o único ponto em comum destes três espetáculos. Mas como é possível que montagens vindas de países diferentes, escritas por dramaturgos que nem se conhecem, compartilhem a mesma personagem no Mirada? Como foi possível construir este fio narrativo, interligando essas histórias? A resposta está no público.
Esse rapaz sou eu, você ou qualquer um. Poderia ser uma moça, uma travesti, um idoso, uma criança. Personagens-público que, sem texto, reagem de acordo com a vontade, com o repertório, com o desejo. Pode só observar, rejeitar, beijar, beber, chorar ou não sentir nada. Enquanto o público imerso interage na cena, alguém observa e, em outro momento, os papéis se invertem. No teatro imersivo, a barreira ator/espectador é quebrada e não existe plateia que não seja, também, elemento da ação e da cena. É só mergulhar.
*Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.