Menu

PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] Paixão pelo real

28976435591_544605ff1c_k

por Ivana Moura, blog Satisfeita, Yolanda?

Os índices que nenhuma gestão quer expor sobre sua cidade são revelados por uma personagem do espetáculo Zona (do grupo santista O Coletivo formado em 2012, na Vila do Teatro), na parada da Catraia do Paquetá (Bacia do Mercado). Suicídios, violências, homicídios na cidade de Santos. Os números não soam assustadores; não por si, mas pelo quadro de brutalidade maciçamente divulgado em toda parte do mundo. As pessoas/ os espectadores não parecerem prestar muita atenção a esses detalhes. Já sabemos, aquilo tudo é teatro. Mais importante garantir o lugar no barco para o passeio noturno pelas entranhas do porto de Santos. E vamos nós. Três embarcações correm, passam próximas dos grandes cargueiros.  Os barcos deslizam pelas águas mostrando a beleza soturna, com marcas de decadência e resquícios do que já o apogeu daquele lugar.

Enquanto as barcaças se cruzam, os dois atores do nosso trajeto desenvolvem sua dramaturgia. Malvina Costa, com o vestido branco e sujo rivaliza com o outro o protagonismo da cena. E entram num acordo e demonstram carícias íntimas. Chamam atenção dos seguranças de um grande navio que gravam a cena do alto, enquanto os interpretes expõem seios e bundas rebolantes para o desfrute de longe. Exacerbam sua sobre-exposição ao olhar.

Acaba o passeio de barco e começa uma caminhada de cerca de 10 minutos, rumo a bar do porto, onde o espetáculo será apresentado. Seguimos feito fantasmas pelo bairro do Paquetá, que já foi uma área de luxo. Alguns personagens nos guiam. Passamos por uma garota que toca acordeom.

Essas paisagens decadentes se erguem como personagem. O cheio forte de combustível de navio, urina e outros excrementos, vidas que afrontam do subterrâneo em suas identidades periféricas, mas icônicas em roupagens carcomidas, tecem a narrativa. Desmascara parte da realidade. Ostenta beleza da marginalidade.  

Sobrevivemos às baratas cascudas que atravessam nosso caminho. Chegamos e o show começa. Em diálogo com os cabarés do alemão Bertolt Brecht, na rua João Otávio no Paquetá. O presidente do Sesc, Danilo Miranda aparece por lá é acomodado num lugar central do estabelecimento, mas não será poupado das provocações.

No artigo Realismo afetivo: evocar realismo além da representação. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, (2012) Karl Erik Schøllhammer expõe que da perspectiva de Alain Badiou a “paixão pelo real se expressava durante o século XX na necessidade de criar distanciamento reflexivo e efeitos de estranhamento no experimentalismo artístico como no teatro de Brecht”.

Ao revelar os mecanismos de sua potência ficcional, a peça evidencia a brecha entre o real e sua representação.

A encenação Zona agencia experiências performáticas e afetivas, borrando ou anulando limites entre artista e espectador. Entre espasmos, seus personagens herdeiros de Plinio Marcos – cafetões, prostitutas, homossexuais, trans, desempregados, assassinos, loucos, artistas abandonados à própria sorte – gritam que esse capitalismo está esgotado.

O mundo está intolerável. No bar/boate o consumo de drogas imaginárias, álcool para alguns, danças e números em que as estrelas se revezam, se revelam, desnorteia o público, envolve a plateia numa hiper-conectividade. Puro teatro é uma das músicas cantadas, reforçada pelo coro dos presentes.

Renata Carvalho, Thays Villar Santos-Bratz, Priscila Ribeiro, Raquel Rollo cantam ou dançam lindamente, com intensidade, na radicalidade possível; Léo Bacarini distribui caipirinha como se fosse porra, exige carinho e fica revoltado com qualquer negativa. São muitos artistas que se alternam nos papeis de figuras da noite: Junior Brassalotti, Caio Martinez Pacheco, Mario Acenjo, Rebecca Alba, Wendell Medeiros, Rafael Ruano, Fernando Henrique de Gois, o diretor Kadu Veríssimo.

Os desejos explodem, taras e busca por prazer sem limite. E os números se multiplicam. Quem está fora de certo padrão consumista pode virar estrela. A relação de poder entre eles projeta decadência humana, círculo vicioso de tortura mútua, superexploração do trabalho, diálogos crus, ferinos, explosões de ódio e violência, humilhações, provocações sadomasoquistas. 

Tensão. Eles intercambiam papéis de poder, pequenos poderes. Seres truculentos, ternos, líricos projetados pelo desejo. Não há maiores amarrações dramatúrgicas. É um estado de impermanência contínua a desconstruir e construir outras realidades cênicas. Eles estão lá naquela boate. Se agridem, se beijam, dançam, cantam lindamente, convocam o público a sair da posição de assistente. Em algum momento ocorre um crime. Em algum momento tudo termina numa noite que parecia não ter fim.

*Leia mais artigos sobre o Mirada 2016 aqui