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PONTO DIGITAL MIRADA

Na pele dos refugiados

por Renato Salles – Chicken or Pasta

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Faltavam 5 minutinhos para as 6 da tarde, quando uma menina entrou na sala e avisou que a van sairia logo. Eu estava no meio de um texto complicado, com tudo espalhado na mesa, mas não teve jeito. Joguei tudo em uma sacola, larguei com alguém por perto, peguei só o essencial e saí correndo. Do lado de fora começava a esfriar, e eu, gripado, já estava arrependido de não pegar um casaco. A pressa era tanta que só percebi que estava apertado e com sede quando chegamos à Estação Valongo, uma estação de trem desativada, que estava fechada e nos deixava ao relento. Eram as minhas primeiras poucas horas de vida como um verdadeiro refugiado.

O espetáculo ‘Fugit‘, da companhia espanhola Kamtchàtka, começa quando um bonde antigo de madeira para em frente à estação. Dois homens com malas na mão descem desconfiados, à procura sinais de perigo, e convidam o nosso grupo a entrar. É hora de fugir de casa, sem olhar para trás, sem saber para onde.

Somos levados a um prédio abandonado, semi-destruído. Estamos em guerra. Do alto de uma escada, alguém mantém vigília contra o algoz invisível. Os outros desempenham tarefas aparentemente triviais, enquanto esperam um sinal.  Eles são líderes da nossa rebelião, e não resta saída a não ser confiar em seus comandos. Nenhuma palavra é dita, nunca. O inimigo pode estar ouvindo.

Somos divididos em grupos menores aleatórios, separados de nossos pares. Numerosos, chamamos muita atenção. Chega o momento, e é hora de escapar.  Saímos à rua, e a sensação de vulnerabilidade é latente. As ordens continuam gestuais: Agache-se! Corra! Salve-se se puder! Vamos passando por lugares feios e sujos, degradados, sem senso de direção. Perdemos nossas identidades, entregamos anônimos nossas vidas na mão de alguns poucos. É a nossa única chance. Os líderes nos mostram pequenos truques de sobrevivência. Nos ensinam a racionar a comida. Não sabemos quando o inferno termina. A fuga segue cada vez mais frenética e desorientadora. A tensão é cortante. O barco navega na escuridão e as histórias de cada um ardem no fogo e se tornam cinzas.

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De repente, um encontro. Ao longe vemos pessoas chegando. São nossos companheiros, todos a salvo. Chegamos à segurança. É um momento feliz, de celebração. O choro desce junto com os sorrisos e abraços impossíveis de segurar. Mas ainda estamos no limbo. Sobreviver é diferente de viver, e agora precisamos achar um novo lar, fora, longe. É um mergulho no escuro. É um conhecer-se de novo. Basta confiar.

*Leia mais artigos sobre o Mirada 2016 aqui.