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PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] Pequena torre de Babel

Viqueira investiga a finitude para celebrar a vida em 20 micro-histórias encenadas numa instalação que simula o aparelho digestivo

Por Ivana Moura
Do blog Satisfeita, Yolanda?

Quantas metáforas cabem no espetáculo Psico/Embutidos, Carnicería Escénica, da Compañía Titular de Teatro de la Universidad Veracruzana, do México? Muitas, com certeza. E é imprescindível disposição do público para jogar-se no açougue cênico do mexicano Richard Viqueira. É um teatro de risco. Mas antes de fazer essa imersão física e sensorial na instalação de oito metros de altura, que replica o sistema digestivo – e ocupa a área de convivência do Sesc Santos, durante o MIRADA} Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos – os participantes recebem algumas instruções.

A montagem é itinerante, inclui subidas em andaimes de diferentes níveis, descidas em tobogãs, espaços reduzidos e os que toparem devem deixar seus pertences com um responsável da organização (celulares, chaves, carteiras, mochilas, bolsas, etc). Um dos avisos diz que se entrar não dá para voltar atrás. Uma desistência no meio do jogo poderia atrapalhar toda a engrenagem, criar dificuldades para todos os espectadores/ atuadores.

É uma viagem. E como toda jornada, depende do viajante. A potência do experimento é compartilhada pelo desempenho do espectador, sua capacidade de escuta, de interagir, de propor, de elaborar e reelaborar, de entrar na partida, de construir subjetividades durante o percurso.

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Em cada sessão, a montagem recebe 40 pessoas para fazer o trajeto. Outras 40 podem assistir à função como observadores externos, mas sem ter acesso aos diálogos, à temperatura e pressão, a troca de afetos nos patamares. Em cada compartimento, de dois metros quadrados, um ator se relaciona com um espectador, por vez. E expõe sua história, em dois ou três minutos de duração. E repete a essência da história para o próximo, e mais outro, mas algo muda. O viajante dessa experiência passa por 20 estações, e escuta 19 micro-histórias.

Fora do horário das sessões, a instalação se abre para visitação como um esqueleto cenográfico que simula o aparelho digestivo humano.

O elenco tem entre 23 a 82 anos. Eles estão nus. A idade de suas carnes está carimbada na pele.

A fábula investe numa salsicha que busca dar um enterro decente para sua mãe, enlatá-la. Mas encontra obstáculos.

A resistência ou oposição vêm de Salsichas pornográficos, salsichas nazistas, Carne em campos de concentração, Mortadelas que deslizam no tempo, Padres pedófilos, Almôndegas gurus tibetanos, Pepperonis e Butifarras que se dizem ginecologistas ou proctologistas.

Somos todos perecíveis

Somos nós também embutidos e digeridos pelo sistema?

Richard Viqueira canibaliza as questões históricas, sociais, políticas e econômicas contemporâneas mostrando que a arte politicamente engajada traça outros escrutínios e exige sacrifícios. Ou no mínimo esforços. Para elaborar respostas, o espectador passa pelas estações e corre os riscos físicos e emocionais. Essa experiência incômoda de subir e descer escadas estreitas, deslizar pelos tobogãs/ simulacros do aparelho digestivo, atordoa. Não há lugar para a passividade no teatro desse mexicano.

Com pulso firme em sua ambição poética, Viqueira rompe com a cena tradicional e traça linhas de agressividade para criticar o presente. Em Psico/Embutidos, Carnicería Escénica, o diretor/dramaturgo forma um time com Jesús Hernández na Cenografia e Iluminação, e Luis Mario Moncada Gil na Direção Artística.

Os corpos encaram a passagem do tempo. Existe uma intimidade em cada situação. Da boca, passando pela traqueia, estômago, intestino, até ser expelida pelo ânus, a criatura andante se depara com momentos hiper-realistas, muitos esdrúxulos, em que somos confrontados, a partir da provocação, com regiões estranhas.

Qual o preço da nossa carne? Pergunta a peça sem piedade. Seres carnívoros, nossa antropofagia é revirada. Os apetites do corpo, as exigências do corpo, as hierarquias dessa carne no mercado em fluidas cotações, que sobem e descem vinculadas a um complexo de fatores do consumo do mundo capitalista.

Cotados, valorizados, em decadência, os corpos humanos enfrentam o tempo inexorável. Que deixam suas marcas, retira peças, inflama órgãos, decompõe outros, rouba o viço.

No espetáculo há hierarquia para tudo, entre Salames e Salsichas. Uns são mais extrovertidos. Outros precisam receber algo, ao menos atenção. Nesse território afetivo, a proposta centrifuga de novo, existimos, a que se destina? Comer, lutar por poder, ganhar, perder, copular, rejeitar, gerar, evacuar, morrer sem propósito transcendental? Mais perguntas.

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Esse diretor parece uma máquina de fazer perguntas.

O trabalho interativo dura cerca de 140 minutos. Não é nem um pouco digestivo. E se, lá no começo, alguém pensou que seria uma experiência sensorial agradável, prazerosa, deve ter se sentido, como eu, invadido, envolvido, provocado para não ficar em nenhum momento numa posição passiva. Ao ser engolida pelo mecanismo da instalação sou obrigada a sentir na carne os dispositivos da nossa sociedade. Que devora e defeca; que direciona meus apetites para seus interesses. Da religião como interdito, do consumo como excesso.

Os atores de Richard Viqueira somam 19, o 20º morreu em julho ou agosto, mas seu box funciona como uma homenagem, em que constam fotografias dele atuando, um certidão de óbito e informes. Há irregularidades ou particularidades na construção dessas dramaturgias, desses microcosmos e na capacidade de convencimento de cada intérprete. Uns nos tocam, abraçam. Há cheiro de suor e sexo. A vida tem seus odores, e os desejos não são assépticos como alguns querem crer.

É uma ironia à sociedade de consumo. Ao materialismo. Sem vida após a morte, o ser humano é o que? Busquem suas respostas… Ao pé do ouvido, um a um narra fragmentos que formam um mosaico. Antes de começar, entre cenas os atores promovem uma espécie de ritual xamânico, uma cerimônia, em que gritam, batem palmas, tiram ritmo do corpo. E depois submete o espectador ao jogo de truques de memória.

Nossa contemporaneidade se vê contemplada naqueles encontros íntimos, com seus sujeitos desconhecidos a repartir privacidades e espelhar o que lhes inquietam como as questões de família, gênero, justiça, identidade, terrorismo, loucura.

Muitos dos personagens perguntam coisas. Na maioria das vezes a idade da carne, o que eu fazia (profissão) e o guru pediu até para eu cantar. Por sorte, minha, o tempo acabou antes de entoar a primeira nota.

Na esteira de tornar o espectador protagonista, alguns convidaram para o ato de despir-se. Eu não topei. Não exatamente por pudor. Vi poucos sem camisa. É uma das aspirações do diretor de incentivar a renúncia da passividade social e estética do espectador dentro da própria função.

Um dos expoentes do teatro contemporâneo do México, Richard Viqueira estica a corda para ampliar limites. Em Psico/Embutidos, Carnicería Escénica ele problematiza a finitude para celebrar a vida. Nada é muito óbvio. É como diz o nono item do seu Decálogo do Teatro de Risco: “Todos perigam no teatro porque escolhem coexistir entre estranhos”.

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