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PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] Mortos sem sepultura

– Ou Quando ninguém acha mais que é possível resistir –

29050381585_40b81b5fea_bPor Welington Andrade

“Um dia conversarei com os meus mortos
E todos os que morri (os muitos eus que eu fui)
reunidos inquietos sôfregos cada qual com um meu rosto na mão
me contarão (sua) a minha história”.

Cassiano Ricardo

Em Cuando todos pensaban que habíamos desaparecido – gastronomiaescénica, a companhia mexicana Vaca 35 Teatro En Grupo, dirigida por Damián Cervantes, trabalha com três dos elementos dramatúrgico-cênicos que aos poucos vêm sendo incorporados à dinâmica teatral contemporânea, e que, talvez por isso, mereçam análise e reflexão mais profundas do que seria possível escrutinar no presente texto. Inicialmente, trata-se de um tipo de experiência estética que estabelece com a culinária uma estreita ligação: atores surgem no palco reunindo ingredientes a serem utilizados em uma refeição, que, preparada em tempo real – coincidente com a duração do espetáculo –, será servida à plateia durante a sessão ou ao final desta. Além disso, atrelados à atividade de cocção dos alimentos, e estabelecendo com ela uma ligação de íntima necessidade, irrompem aqui e ali depoimentos pessoais dos intérpretes, por meio dos quais cada um deles é convidado ao exercício da memória e da introspecção. Por fim, uma espessa massa de informações históricas, ligadas direta ou indiretamente a questões atuais, é evocada em cena, convertendo o espetáculo em uma espécie de ato cultural de clara manifestação política. (Os recém-estreados em São Paulo O avesso do claustro, da Cia. do Tijolo – que integra a programação deste Mirada 2016 –, e Nós, do Grupo Galpão, lidam com a mesma matéria descrita aqui).

A proposta é sedutora por si só, mas pode soar puro maneirismo se não for realizada com aquela dose de equilíbrio bastante difícil de mensurar. Tal risco não correm nem os trabalhos aludidos ao final do parágrafo anterior, tampouco o espetáculo do grupo Vaca 35. A primeira coisa que chama a atenção em Cuando todos pensaban que habíamos desaparecido é o seu caráter de dilatada espontaneidade. Chega-se a duvidar de que aquilo a que se assiste seja de fato teatro. (Há muitos modos de matar o teatro dramático – historicamente naturalizado a ponto de ser tratado, na esfera da convenção, como o único possível – e a performatividade [um dos conceitos mais complexos do exercício das teatralidades contemporâneas], a festa e o ritual estão entre eles). Pois bem, a primeira qualidade da experiência da companhia mexicana é ajudar a derruir certa ideia fossilizada de teatro, que ainda encanta, sim, boa parte do público nos dias de hoje, mas que também exerce sobre ele incontestável tirania. A performatividade encarnada pelos integrantes do Vaca 35 está relacionada sobretudo à noção de festa realizada em torno dos prazeres da mesa e em homenagem aos mortos (cujos traços estão indelevelmente enraizados na cultura mexicana) – metáfora que, no trabalho, se desdobra em um expressivo conjunto de signos teatrais, metateatrais e extrateatrais.

Logo após adentramos o belíssimo espaço da Casa da Frontaria Azulejada (cuja dimensão arquitetônica e histórica confere à experiência a que iremos nos expor um caráter memorialístico todo especial) e sermos recepcionados discreta, mas simpaticamente pelos atores, estes amontoam seus corpos de modo desconjuntado, e bastante desconfortável até, por cima da mesa central presente em cena e começam a proferir uma série de ditos escatológicos, repetidos à exaustão. O procedimento, que pode incomodar os mais sensíveis, dado o nível de grossura das coisas faladas em tom de pura diversão, nada mais faz do que chamar a atenção para o revés da comida, que são os fluidos corporais, os detritos e as fezes. O mecanismo narrativo da inversão paródica, conforme nos lembra Mikhail Bakhtin, em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, está justamente calcado na dualidade e no jogo, que leva à experiência da alternância e da renovação, caracterizadas, a partir da observação dos festejos carnavalescos, “pela lógica original das coisas ‘ao avesso’, ‘ao contrário’, das permutações constantes do alto e do baixo (‘a roda’), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões. A segunda vida, o segundo mundo da cultura popular constrói-se de certa forma como paródia da vida ordinária, como um ‘mundo ao revés’”.  Assim, somos convidados logo de início a reverter certa noção enlevada de comida – fetichizada de tal maneira nos dias que correm a ponto de servir, por exemplo, ao sem-número de programas culinários que tomaram de assalto a programação televisiva mundo afora – e a pensar nela, sob a ótica do espetáculo, a partir das ideias de morte e finitude. Pura escatologia, enfim.

O mote escatológico, rapidamente ficamos sabendo, costura todo o espetáculo e dá sustentação aos jogos de alternância de sentido que serão propostos. No plano microscópico, por exemplo, o Diabo é invocado, mas sua presença é compensada pela recitação do Pai Nosso. Já no âmbito da estrutura dramatúrgica maior, o gregarismo, a solidariedade e o sentimento de união que irmanam aqueles seis atores em cena, ladeados por um músico a que tudo assiste e que tudo pontua com sua bela voz e seu enervado violão flamenco, são rompidos em dois momentos especiais: primeiramente, quando todos se deixam possuir por forças delirantes e dionisíacas; depois, quando um desentendimento geral começa a sair do controle e faz a cena mergulhar em uma atmosfera de brutalidade e violência incontidas, desconfortáveis, lancinantes.

Embora difíceis de digerir (o trocadilho aqui é incontornável) pela imagem que encarnam, tais momentos certamente não são os mais perturbadores do trabalho – uma vez estarem calcados em certo exercício de histrionismo e exasperação até certo ponto controlado. A longa enunciação de uma série de atrocidades cometidas em nível global soa como um ingrediente muito menos palatável e contrasta fortemente com a delicadeza que seria o ato de cozinhar. Seria, porque, para os integrantes do Vaca 35, a comida que está sendo preparada – eis aqui uma vigorosa linha de força da empreitada a que eles se lançam sem amarras – precisa admitir em sua cocção não somente os afetos experimentados, mas também os ódios destilados; não somente as memórias pessoais mais indeléveis, mas também os registros de indignação mais inquietantes por terem caído em sombrio esquecimento; não somente temperos e condimentos, mas também suores e salivas. A base de cada prato que será servido ao final é uma papa espessa e grossa, que, embora esteja “no centro de uma mesma e estranha mesa”, funciona como uma espécie de antídoto do pote até aqui de mágoa preparado pela Joana de Gota d’água, porque, ao contrário de envenenar e aniquilar os inimigos, haverá tal mistura de estabelecer laços de identificação, pertencimento e amizade.

Todas as histórias pessoais contadas por esses atores-cozinheiros constituem na verdade uma única e entrelaçada narrativa de origem. Despertam-se por meio delas alguns tantos mortos queridos e outros entes familiares nem tão estimados assim, que, por força da experiência de transfiguração que somente a morte é capaz de proporcionar, readquirem novo estatuto simbólico na mitologia pessoal de cada intérprete. Avôs e avós, pais e mães, tios e tias são evocados em cena e ressignificados pela via de uma dolorosa alegria. A difícil, mas, mesmo assim, alegria de que fala Clarice Lispector. Desse modo, além de saliva e suor, muitas lágrimas também se misturam aos ingredientes dos pratos que estão sendo preparados. O recurso é previsível, mas movido por uma aura de latinidade contra a qual é muito difícil opor resistência. O barroquismo que une mexicanos, espanhóis e brasileiros (há um mineiro em cena, representando os conterrâneos de sua nação que formam grande parte do público) é aqui expresso pelas lágrimas vertidas a partir da evocação das cenas de origem. Que pertencem não somente à trajetória dos atores, mas à nossa própria história também.

Cuando todos pensaban que habíamos desaparecido investe em um registro de genuidade que pode passar por banal, mas que precisa ser entendido em contexto mais amplo. Quanto tudo é representação, super-representação e hipertrofia do espetáculo, cozinhar, contar histórias e compartilhar certa indignação geral podem fazer a diferença. Talvez ninguém aguente mais um cantor obscuro em um barzinho qualquer espraiado de norte a sul do Brasil dar início à mil vezes cantada Flor de lis. Mas quando a hoje palidamente bela canção de Djavan reaparece na execução da voz e de um violão hispânicos, o pálido se converte em singular. Pela via da comicidade e do afeto. Ao teatro hoje em dia talvez caiba também tratar desse tipo de beleza.

*Welington Andrade é doutor em literatura brasileira pela USP, na área de dramaturgia. É professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero desde 1997, crítico de teatro da revista Cult e autor de um dos capítulos da História do teatro brasileiro: do modernismo às tendências contemporâneas (Editora Perspectiva/Edições Sesc-SP, 2013).

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