PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] Mecânica teatral que produz encantamento
Montagem resgata o universo lúdico da infância por meio de procedimentos artísticos artesanais
Por Daniel Schenker
A princípio, a revelação da mecânica teatral quebraria com a possibilidade dos espectadores se encantarem com o trabalho a que assistem, na medida em que haveria um rompimento da ilusão por meio da exposição da produção dos efeitos e não tão-somente uma apresentação dos resultados alcançados. Não é, porém, o que acontece em Simón, el Topo, montagem do grupo peruano Teatro La Plaza dirigida por Alejandro Clavier Botetano.
Há alguns exemplos da evidenciação dos procedimentos ao longo da sessão. Logo no início, um ator manipula e faz a voz do boneco Simón, um menino de dez anos. Os demais explicam as circunstâncias ao público. Em dado momento, avisam: “Simón vai contar a sua história”. A partir daí, a divisão inicialmente estabelecida entre os atores termina. A música (de Magali Luque) é acionada e a iluminação (de Jesus Reyees) acentua o azul que emoldura o espaço (direção de arte de Vladimir Sánchez). A confecção dos bonecos (de Simón e dos personagens coadjuvantes) evidencia a aposta, ainda que discreta, em cores marcantes (amarelo, azul, laranja, rosa, roxo, vermelho). Mais adiante, uma atriz joga papel picado prateado, simbolizando a chuva. Um ventilador é acionado, espalhando os pedacinhos de papel.
A presença dos atores (Emanuel Soriano, Anai Padilla, Luccia Mendéz, e Dusan Fung) é bem visível, como todo o resto. Ao invés de ocultarem suas identidades, os atores aparecem em macacões azuis manipulando os bonecos, fazendo as vozes, movendo os elementos cenográficos. Os atores falam uma língua ininteligível e, mesmo quando explicam as situações da história, não há legenda para guiar os espectadores, ao contrário dos demais espetáculos estrangeiros que integram a seleção do Mirada. De fato, não é necessário. Os integrantes do grupo parecem lembrar que a interação com a plateia não se dá obrigatoriamente a partir de uma língua comum. Vale questionar apenas o registro vocal adotado pelo elenco, que soa vinculado a um certo estereótipo que acompanha o teatro infantil.
Ao deixar a construção da cena à mostra, o diretor realça a limitação espacial do teatro, vista, contudo, como uma riqueza e não como uma desvantagem em relação a outras manifestações artísticas. A impossibilidade de concretizar todas as imagens diante do público faz com que a parceria com o público seja acionada. Cabe a cada espectador completar o que vê a partir das sugestões lançadas pelo trabalho em questão.
Na contramão do investimento em aparatos tecnológicos, Simón, el Topo sinaliza a defesa de um teatro artesanal. Uma grande mesa serve de palco às peripécias do personagem-título e as cenas ambientadas embaixo dela trazem à tona as brincadeiras de infância. Há relativamente poucos objetos cenográficos, dispostos em estantes e ao fundo da cena. É perceptível uma conexão entre o caráter artesanal e o universo lúdico descortinado ao longo de uma história que remete à infância de décadas passadas, simbolizada, em especial, pelo contato com a natureza. As nuvens, a chuva, a lua, a borboleta, as flores tomam conta da cena. O rádio também evoca um passado afetivo.
Adaptação do conto da escritora espanhola Carmen de Manuel, realizada pelo próprio Clavier, Simón, el Topo destaca, a partir de certo instante, o elo que se estabelece entre o protagonista e outro menino. A sintonia entre ambos é sintetizada numa frase: “Simón havia conhecido alguém que sente como ele”.
*Daniel Schenker Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e da revista Preview. Escreve para os sites Teatrojornal e Críticos e para o blog danielschenker.wordpress.com. É membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio, Questão de Crítica e Reverência.
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