PONTO DIGITAL MIRADA

Culpado ou inocente? Eis a questão.
O veredicto final é dado pelo público a cada apresentação
Por Indiara Duarte/Sesc Sorocaba e Juliana Ramos/Sesc SP
O palco é uma sala dentro do Paço Municipal de Santos, onde julgamentos reais aconteceram no passado. O público ocupa as cadeiras de madeira que rangem, acusando sua idade avançada. Entra o juiz e sua assistente, às 15h, do dia 12 de setembro de 2016, na Sala Princesa Isabel, é aberta a sessão de julgamento de Hamlet, acusado do homicídio de Polônio.
Até aqui a vida real nos parece um espetáculo. Há figurinos, papéis a serem interpretados, um roteiro a ser seguido. “Onde estão os atores?”, os olhares curiosos parecem perguntar. Era como se estivessem disfarçados ali, diante de nossos olhos.
Entra então a primeira testemunha da acusação, Ofélia. A jovem negra que a interpreta, Mariana Nunes, é atriz. Finalmente o público passa a entender o rumo que se traça. Mas a interpretação rapidamente nos traz de volta à realidade. O sofrimento de Ofélia está nos olhos. E nós todos, que não conhecemos Hamlet, o jovem sentado à esquerda do juiz, começamos a julgá-lo. Enquanto a promotora questiona a testemunha, descobrimos que Ofélia e Hamlet se conhecem desde criança. Que namoraram por um ano. Que desde a morte do pai dele, tem se comportado de maneira distante e agressiva. Que ela o odeia, porque matou o pai dela.
Assume a tribuna Gertrudes, mãe do acusado. Uma mãe que se sacrificou pela família, casando-se com o irmão de seu falecido marido, para garantir a renda da família. A emoção impressa em suas palavras nos leva à cena do crime, tornando-nos cúmplices do seu relato. Talvez isso ocorre pelo fato de Iléa Ferraz interpretar sua Gertrudes com a força de uma mulher que vive na periferia, e se sente na obrigação de manter o sustento de sua família, mesmo que isso resulte em abrir mão dos seus próprios anseios.
Em seguida foram ouvidos profissionais do corpo técnico: o médico legista e o psiquiatra forense, personagens da vida real que, baseados no dossiê apresentado pelos diretores do espetáculo, deram seus laudos.
Questionado pelo juíz sobre a possibilidade de permanecer calado, Hamlet quebra o silêncio. “Eu quero falar”. Visivelmente nervoso nos leva a questionar: o nervosismo era do personagem ou do ator?
Promotora e advogada de defesa defendem seus argumentos enquanto questionam o acusado. Hamlet agiu com imprudência ao tentar matar um rato ou friamente ao esfaquear o pai de seu namorada? A promotora argumenta que um golpe desferido com tamanha força é a reação instintiva de qualquer pessoa que tente matar um rato. Relata enfaticamente que sendo Hamlet um rapaz violento, que andava sempre armado e admitindo ter agredido Ofélia, era uma questão de tempo até que uma tragédia ocorresse.
A advogada de defesa reforça a origem do réu: um negro, da periferia, sem oportunidades, perseguido pela polícia, emocionalmente abalado com a recente morte do pai e o casamento da mãe, e argumenta “in dubio pro reo”, que em caso de dúvidas, toda pessoa é considerada inocente até se prove o contrário. A cada encenação, o desenrolar da história é único. Os argumentos escolhidos raramente se repetem e a conclusão é tomada imediatamente em seguida ao discurso final das duas partes, pelo júri sorteado pelo juiz.
Conversando com Roberta de Melo Alves, 40, sentada ao lado, descobrimos como a situação é percebida pelo público. “Eu não acho justo.” Explica que a impressão é anterior à peça e que é muito difícil entender como a vida de uma pessoa pode ser julgada com base na habilidade profissional de magistrados. Perguntamos a Felipe Gonzalez, 34, se conhecer a obra de Shakespeare influenciou sua opinião sobre o espetáculo. “Não. Dá pra separar. A adaptação é muito bem construída e a história fica bem diferente.”
Inocente. Naquela tarde de segunda-feira, Hamlet voltou para casa com sua mãe, absolvido pelo júri presente. O público parecia aliviado. O julgamento pareceu ter o desfecho esperado pela maioria presente. “Gostamos muito”, afirmam as pessoas sentadas à nossa volta.
Após o veredicto, a cumplicidade entre público e ator impedia o espetáculo de terminar. Fomos conversar com os atores, tão surpresos com o desenrolar da história quanto nós. “Não acredito que de novo inocentaram o Hamlet!” bradava Matheus Macena, o ator que interpretou o próprio. “Eu queria que ele fosse condenado para ver o que acontece. Será que não estou fazendo direito o meu papel?” O diretor Roger Bernat conta que, em Recife, Hamlet interpretado por outro ator foi condenado. “O ator interpretou Hamlet como um homem violento. Bruto. A plateia ficou com medo dele e o júri o condenou.”
O dinamismo dos improvisos quase nos faz esquecer que estamos diante da ficção. Ao que nos pareceu, atores, advogados e peritos, todos também eram público. E assim como nós, se sentiram provocados, envolvidos, imersos naquele julgamento.
*Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.