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PONTO DIGITAL MIRADA

Quando só eu não me despi

O dia que me senti menos humana por ser a única vestida na sala.

Por Julia Parpulov/Sesc Vila Mariana

Cena do espetáculo Psico/Embutidos | Foto: Matheus José Maria

Teve bastante nudez no Mirada e o espetáculo que mais chamou a atenção por isso foi o Psico/Embutidos, Carnicería Escénica, no qual todos os atores e atrizes ficam nus dentro de uma instalação que simula o sistema digestivo. O público, como se fosse um alimento, “passeia” pela instalação de 8 metros de altura, parando em frente a cada ator/atriz para uma cena, ou conversa, de dois minutos. Logo no início você também é convidado a se despir, se tiver vontade ou coragem.

Participei do espetáculo e não me senti à vontade para tirar a roupa, como a maioria do público, mas algumas pessoas sim. Pudor, vergonha, preocupação, são vários os motivos que não nos deixam nos expor assim, mesmo quando se é permitido. Pensando em trabalhar isso, houve um laboratório com o diretor da peça, Richard Viqueira, e com os atores Benjamín Castro, Karla Camarillo e José Palacios, em cima do processo de criação do espetáculo, abordando a nudez e buscando relatos de vida, por meio de métodos de criação teatral. Eu diria mais uma oficina de libertação.

Sabendo da grande possibilidade de ter que me despir neste laboratório, pedi para participar apenas como ouvinte. Conversei com os participantes antes, quatro meninas e dois meninos, avisando que só fotografaria o início da oficina. Não queria inibi-los. O diretor começou falando sobre a peça e sobre o que seria trabalhado na atividade. Depois o ator Benjamín Castro explicou o exercício das oito “estações”:

– Zona da Nudez
Obrigatoriamente teria que ser a primeira. Num quadrado marcado com fita crepe, bem no meio da sala, a pessoa deveria entrar lá e tirar toda sua roupa, no seu tempo, para então começar a passar pelas outras estações.

– Zona Cicatriz
Parar neste ponto e falar a história de alguma cicatriz de seu corpo.

– Zona Histórica
Comentar algum fato histórico marcante da sua vida ou político.

– Zona Apócrita (Falsa)
Dizer algo que é mentira mas que você faz, ou já fez, os outros acreditarem que é verdade.

– Zona à Própria Morte
Relatar algum momento em que esteve próximo de uma situação de morte.

– Zona Insignificante
Falar qualquer coisa que queira expor.

– Zona Emboscada
Refúgio onde o participante podia parar e só observar os outros, sem precisar falar ou fazer nada.

– Completar a frase: “O que fiz a 1ª vez que me descobri sexualmente…

Início do Laboratório “Experimentações Psicoembutidas” | Foto: Julia Parpulov

Todos começam a circular na sala, sob os comandos dos ministrantes. Correr o máximo que der, andar o mais lento possível, abaixar-se, elevar-se, arriscar-se na gravidade, pensar no limite do próprio corpo, contrastar com os seus parceiros, tentando manter um equilíbrio de movimentos entre um e outro para não cair na monotonia do ritmo. Assim seguiu por uns 15 minutos até o diretor, tentando manter naturalidade e ainda dando instruções, entrar e tirar a roupa na primeira zona. Na sequência, os atores, um a um foram se despindo. Logo os participantes também foram se sentindo à vontade e entraram de corpo e alma. Menos uma mulher.

Cada um parava na esfera que queria e contava aos ventos seus mais íntimos segredos, mas de uma forma caótica todos falavam ao mesmo tempo, mal se ouviam. Era uma exposição que mexeria com o interior de cada um. Continuavam a correr, se movimentar, todos como vieram ao mundo e já não se importando mais em estar daquele jeito tão vulnerável, pois todos estavam na mesma situação.

A sala começa a ficar quente pelo calor das palavras que saem da alma, misturadas aos medos antes guardados e ao odor corporal do esforço físico e do nervosismo. A mulher mais jovem ainda estava vestida. Só ela e eu. Mas ao final, numa clara indecisão, ela para por um momento com o pé em cima da linha da zona de nudez e como num salto a um precipício, entra e começa a ficar nua, faltando cinco minutos para encerrar o exercício. Aproveitou e começou a falar sobre si nas outras zonas. Sentia-se pronta agora.

Finalização do Laboratório “Experimentações Psicoembutidas” | Foto: Julia Parpulov

Depois de quase 30 minutos de exercício, o diretor recomenda que todos caminhem lentamente e se sentem em círculo, vestidos ou não. Viqueira fala suas impressões sobre como foi o processo no geral, como tiveram diferenças de tempos e de como alguns se expressam melhor com o corpo e outros com as palavras.

Por toda a oficina me senti uma estranha no ninho, uma intrusa invadindo a intimidade alheia, mas me encontrei em muito do que eles falaram e acredito que muitas pessoas também se espelhariam. Todos nós temos medos e expor seu corpo a pessoas completamente estranhas é uma maneira de arrancar estas inseguranças. Ficou claro que todos estavam na mesma situação de constrangimento, mas também na mesma situação de se libertar de algo. Ao final, cada um fez seu autorretrato, dizendo para aquele pequeno grupo, que praticamente virara sua família por uma tarde, suas histórias de vida e seus anseios. Houve comoção. Eu os admirei muito pelo que passaram e me senti menos humana estando de roupa ali naquela sala com eles. Vestida de pano e pele.

O trabalho com o corpo leva tempo, pois abre algumas portas. No fim, o que era para ser um processo teatral se tornou uma oficina para abrir o coração e a mente para os atores da vida. Todos somos corpos com histórias, só precisamos nos ouvir e saber ouvir e respeitar os outros. E mesmo assim só eu não me despi naquele dia.

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