PONTO DIGITAL MIRADA

Por dentro d’Acapela
Uma experiência para perder o fôlego
Por André Venancio / SescSP
Cena de Acapela, espetáculo chileno que leva a respiração a limites inimagináveis
Preciso parar de fumar. Dentro daquele casulo excessivamente branco, pousado no Ginásio do Sesc Santos, eu olhava ao redor, e a maior parte das pessoas tinha uma expressão de tranquilidade no olhar. Já eu procurava o ar que parecia não conseguir entrar nos pulmões, apesar do meu diafragma estar se contraindo em seu máximo. Preciso parar.
Quando chegamos ao Ginásio, às 18h, fomos orientados pela produtora chilena – esforçando-se muito para se comunicar em português – a tirar os calçados, as meias e as bolsas. Tudo ficou acomodado metodicamente nas arquibancadas, fazendo aquele espaço ganhar um ar meio mórbido, cheio de pares de sapatos enfileirados como covas dispostas lado a lado. No centro, um enorme casulo branco se impunha soberano. Nós, descalços, íamos em fila até uma pequena fenda aberta nele. Um a um, adentramos o espaço.
A bolha onde o espetáculo acontece, no ginásio do Sesc Santos
Sentados em círculo, quase encostados nas paredes internas feitas com algum material delicado como uma seda, o público se entreolhava. Ansiedade, curiosidade e um pouco de medo dominava alguns dos olhares. Um zíper fecha delicadamente a fenda por onde entramos. Vai começar “Acapela”.
“Preciso parar de fumar.” Inspira
“Acho que só eu estou sentindo a respiração desconfortável”. Expira
“Quanto tempo vai durar isso mesmo? Setenta minutos?” Inspira
“Quanto tempo será que já passou?” Expira
“E se alguém passar mal?” Inspira
“Se eu pedir pra abrir essa maldita fenda agora, vou estragar tudo, não vou?” Expira.
O isolamento acústico daquela bolha-casulo é impressionante, mas pensamentos não davam pra ouvir, eu acho. Se bem que, por mais de uma vez, notei que algumas pessoas – mulheres, sempre! – me olhavam de forma acalentadora, como se dissessem que está tudo bem e me acariciassem no rosto.
Ao redor da bolha, os seis artistas estavam de pé, de costas para o público, vestidos totalmente de branco. Os olhos fechados, numa espécie de transe, totalmente imóveis. Percebo no que está mais próximo a mim um movimento muito sutil na ponta dos dedos da mão esquerda. Apesar de me parecer que a carne tremia involuntariamente, havia um ritmo ali. Nada era involuntário.
Preciso parar de fumar. Inspira. Olho as pessoas à minha volta, e algumas se alongam. Começo a notar traços de desconforto em mais alguém, além de mim. Expira.
Os bailarinos começam a se mover para o centro da roda formada pelo público, em movimentos que me lembram insetos, com um alongamento excessivo das extremidades do corpo. O som da respiração deles é a única coisa que se ouve, e a respiração conduz a ação de cada um, ainda em transe, ainda com os olhos fechados.
O que parecia um exercício de respiração rotineiro, com movimentos leves do corpo, ganha ares de tensão. A iluminação da bolha vai variando lentamente, do branco ao amarelo, que pareceu esquentar ainda mais o espaço. Os movimentos daquela dança vão, a cada segundo, exigindo mais fôlego dos performers. Ao longo do espetáculo, é com a respiração que cada um deles demonstra força, raiva, alegria e tesão. A intensidade com que eles puxam o ar para dentro, ou expulsam-no para fora do próprio corpo, durante toda a apresentação, é sempre brutal. Expira.
“Quanto tempo vai durar isso mesmo? Setenta minutos?” Inspira
“Quanto tempo será que já passou?” Expira
“E se alguém passar mal?” Inspira
Os movimentos da dança, a intensidade da respiração, as reações do público, o branco irritante daquela bolha. Tudo em “Acapella” é intenso. Não há um som sequer que não seja causado pelo barulho da respiração dos performers, porém é como se ouvíssemos gritos, risadas, gemidos, sussurros.
Quando o suor já exibia a pele molhada por baixo dos figurinos brancos dos performers, que estavam em um movimento quase sexual onde a única penetração envolvida era o ar, as paredes internas da bolha começam a se mover, como se recebessem – pelo lado de fora – uma rajada de vento.
Inspira.
A fenda se abre e adentra ao espaço um ventilador, que naquele momento poderia ser comparado a uma turbina de um avião de pequeno porte, sem qualquer exagero. Os performers parecem, então, consumir o ar gerado pelo equipamento, como as mariposas parecem consumir a luz das lâmpadas ao anoitecer. Tal como quem tem sede e encontra um lago, aquelas seis pessoas pareciam beber o vento, colocando cada gota de ar para dentro.
Expira.
Após saciarem a sede, eles abandonam o casulo que, com a fenda aberta, começa a cair suavemente sobre o público. É hora de sair.
Inspira. Expira. Inspira. Expira. Inspira. Expira. Inspira. Expira.
Preciso de um cigarro.
*Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.