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PONTO DIGITAL MIRADA

Os gatilhos do humor de Felipe Hirsch

A segunda parte de “A Tragédia Latino-Americana” repete a provocação da primeira.

Por Renan Abreu – Sesc Consolação

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Já passava das 19h no salão do belíssimo Teatro Coliseu, no centro histórico de Santos, quando o sinal anunciava que o público poderia entrar. Centenário, o teatro de poltronas de madeira maciça em posição quase completamente vertical denunciava que a experiência não seria confortável. O diretor sobe ao palco, agradece ao público e confirma: “Este espaço está acostumado a receber comédias curtas. Esta que vocês verão, nem tanto.” Primeiras risadas tímidas são escutadas da plateia. São 4 horas previstas de espetáculo.

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No corredor ouve-se uma discussão e não se sabe ao certo se a peça já começou. O sinal já foi dado, mas não há aviso, não há luz. Eles estão com microfones e o som já reverbera pelo espaço. Um homem e uma mulher discutem e ele a carrega para a primeira fila. Forçando e  arrastando-a, ele quer que ela participe. Há um cuidado entre os dois, de não se machucarem, mas de ser real, de ser verossímil. Ah sim, é teatro.

Ele sobe ao palco e tenta convencê-la a participar:

“Vem! Você vai gostar” – ele insiste.

“Mas eu não gosto de teatro” – ela rebate desconfiada. Mais risadas.

A discussão continua. Ela lista dezenas de coisas que gosta mais do que teatro: sexo anal, banana, literatura cabeçuda, ironias. Sem sucesso. Ele insiste ainda, diz que vai ser bom, que ela não vai se arrepender. Convencida, mas ainda um pouco reticente, ela lentamente vai se aproximando do palco e ele assume o lugar dela na plateia. “O que fazer agora?”, ela pergunta. “Eles não vão gostar. Eles só reclamam.” O público vai abaixo e cai em gargalhadas de novo.

A segunda parte de “A Tragédia Latino-Americana”, de Felipe Hirsch, intitulada “A Comédia Latino-Americana”, é realmente uma “comédia, mas violenta” segundo o próprio diretor. Uma fanfarra encenada em sketches que mostra, com adaptações e trechos de narrativas em prosa, canções entoadas em coro e diálogos existencialistas, a “cara” da America Latina.

Até então escondida do lado esquerdo do palco, a banda começa a tocar. Um musical em coro é iniciado pelos 7 atores e, em seguida, o enorme muro formado por blocos de isopor é derrubado de uma vez só diante do público. A impressão que dá é de se tratar de uma abertura de cortina, um passaporte para o tão temido teatro. No musical não é possível ouvir as risadas do público, a provocação é invocada com uma contradição. Uma hora se ri pelo trágico, outra hora pela paspalhice e pelo nonsense. A primeira evidência disso é quando, vestido de Pero Vaz de Caminha, Caco Ciocler interpreta uma versão menos polida e mais sórdida da famosa carta enviada ao rei D. Manuel, no testemunho do descobrimento do Brasil.

A aproximação do relato com a atualidade diverte o público, mas expurga e evidencia nossos preconceitos e mazelas. É um riso incômodo, como um exercício sensorial de contração e relaxamento, o que choca, faz rir e leva a uma autoindulgência. Eis aí um primeiro gatilho do humor, da forma mais primitiva de comédia. Existe também um fator que adiciona uma camada extra de prazer ao ouvinte. Além de rir dos elementos engraçados da história, existe a satisfação de ter decifrado o código da piada. Rimos de nós mesmos.

Os sketches são separados por números musicais curtos, com a declamação de textos da literatura latina, todos em espanhol. Essa mescla é apoiada pelo uso de legendas que em determinado momento torna-se quase desnecessária. Entendemos o contexto, o gestual e aquilo que nos qualifica enquanto latinos: a nossa cultura.

O intervalo chega e daqui em diante criamos fôlego para a segunda parte. No início do espetáculo, Hirsch já afirmava que aquilo iria se tratar de um esboço. Um esboço que seria lapidado sem a presença da banda e com atores empunhando o texto em mãos.

Dois personagens discutem em cena. Percebe-se uma estrutura bem definida. Iniciam uma espécie de trivia existencial sobre a liberdade. Como um protótipo de duas coisas diferentes, a piada e o enigma que tem que decifrar, eles argumentam exaustivamente não chegando a conclusão alguma. O argentino Javier Drolas, único “gringo” do elenco formado inteiramente por brasileiros, fala em sua língua, mas todos entendem. O público ri e palavras pouco parecidas com o português se tornam naturais aos ouvidos que, por 3 horas, já se encontram extasiados pelo dilema épico encenado pela dupla. Eles iniciam uma aventura que parafraseia a repressão. Mais um gatilho de Hirsch: a repetição.

Todos riem, mas estão exaustos. A conclusão torna-se necessária e o fim demora a aparecer, mas o público nega-se a sair do teatro. Seria a sua participação um termômetro para isso? Um processo também ocorrido na primeira parte de “A Tragédia Latino-Americana”? Afinal, um dos pressupostos do humor é que ele tenha um espírito. Algo que vai além do corpo e da mente. Estaria encerrada a comédia quando as risadas acabam então?

Talvez as respostas apareçam ao fim de cada apresentação.

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*Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.