PONTO DIGITAL MIRADA

A mirada de Narciso
O que é a realidade senão uma história que alguém contou?
Por André Venancio/SescSP
O que é a realidade senão uma história que alguém contou? Seriam as verdades, mentiras muito bem contadas? Qual é a sua verdade?
Realidade e ficção são as matérias-primas usadas pelo uruguaio Gabriel Calderón na apresentação de La Ira de Narciso. Carismático e com evidente timidez, Gabriel recebeu o público que adentrava a sala do C.A.I.S Vila Mathias cantando clássicos da música uruguaia. Pensado para um momento de descontração, em quanto os mais atrasados tinham algum tempo para chegar, a estratégia não dá certo: evidentemente, o momento karaokê só funcionaria se a plateia conhecesse alguma canção. Gabriel, então, arrisca seu português para cantar “Pense em Mim”. O público ajuda.
Antes de iniciar o que ele chama de relato, Calderón explica que não é ator. Diretor e dramaturgo, ele está ali para contar uma história. Uma enorme tela atrás dele, faz às vezes de Power Point e também oferece outros recursos multimídia. É por ela que conseguimos conversar via Skype com a mãe do protagonista. Também por ela conhecemos a cidade de Liubliana, capital da Eslovênia, por meio dos recursos do Google Maps. É por ela que somos cúmplices de Gabriel ao usar um aplicativo de paquera com geolocalização, e juntos (nós e ele) conhecemos o Igor. Ou o torço do Igor, sem camisa, exibido com orgulho no perfil online.
A questão é que não sabemos se é mesmo Gabriel que está diante de nós. Apesar de ser o que consta nos créditos do espetáculo, isso pode não ser verdade. O jovem de uns 35 anos que diz ser Gabriel Calderón explica que, em alguns momentos da história, se tornará Sergio Blanco, o criador do espetáculo e de quem recebera o texto de presente, criado em sua homenagem. Dúvidas.
Qualquer coisa que se diga a partir daqui sobre o enredo seria leviano, porque pode não ser verdade. O fato é que, por cerca de duas horas – que passam rápidas como minutos – Gabriel relata o caso vivido por Sergio durante sua estada na Eslovênia onde apresentou uma conferência sobre o mito de Narciso. Um estranho caso de assassinato, uma atração sexual incontrolável e o excesso de trabalho permeiam a narrativa, sempre com o bom humor do palestrante que não é ator.
Nos trechos em que conta detalhes sobre a conferência, ao falar sobre o olhar de Narciso, o discurso de Gabriel parece falar sobre o Festival que estamos vivenciando em Santos: segundo ele, la mirada do Narciso é uma metáfora para o olhar de um artista. Uma Mirada que olha para si em busca do outro. Que transforma e imortaliza o que vê. Apesar do texto não ter esse propósito, serviu perfeitamente como homenagem a tudo que vivenciamos, transformamos e imortalizamos dentro de nós nesses últimos dez dias.
Mas, se estamos falando em autoficção, será que foi tudo verdade?
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