PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] Uma ode ao jorro discursivo
Experiência e relação com o espectador na instalação performática World of interiors
Por Pollyanna Diniz, do blog Satisfeita, Yolanda?
Andar pela cidade ou ir a algum lugar inusitado para assistir às cenas de um espetáculo. Acompanhar os atores preparando uma refeição durante a peça, enquanto atuam, e ser convidado a comer depois, todos juntos, atores e público. Chocar-se (ou, ao menos, deixar-se surpreender), com a utilização de galos calçando tênis no palco do teatro. Hoje, 13 de setembro, estamos ainda no 6º dia do Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, mas quem está acompanhando a programação desde o início, já pôde vivenciar essas situações descritas acima e outras tantas mais. Como se vê, a experiência é muito cara ao teatro contemporâneo. Talvez pela correria dos nossos dias, pela quantidade de estímulos a que somos submetidos, pela transformação do cotidiano em banalidade, o teatro tenha cada vez mais assumido a tarefa de promover ou provocar a experiência.
Ainda na fila, como de costume, recebemos a orientação para desligar os celulares e ainda um aviso não tão rotineiro: “tomem cuidado ao subir as escadas e pisar no chão da sala”. Era preciso estar bastante desatento a ponto de tropeçar nos corpos dos atores/performers deitados no chão da sala da Cadeia Velha, na Praça dos Andradas, em Santos. Os corpos que compõem o trabalho World of Interiors, cujos conceito, direção, espaço cênico e luz são assinados pela dupla Ana Borralho e João Galante, de Portugal, estavam praticamente inertes. De olhos fechados, fones de ouvido, sussurravam palavras inaudíveis a quem adentrava o local.
Especulo que, como grande parte dos espectadores daquela sessão específica já tinha ampla intimidade com os procedimentos do teatro contemporâneo, ou havia mesmo tomado conhecimento da proposta da performance anteriormente, foi muito rápido, quase não houve gap, até que se estabelecesse o cenário que poderia durar pelas próximas duas horas. As pessoas foram sentando ao lado dos atores, baixando as cabeças. Ou deitando bem pertinho, para tentar colocar-se no mesmo plano e aí, quem sabe, ouvir algo, decifrar o que diziam baixinho. No geral, um esforço individual, mas também coletivo, já que as pessoas faziam silêncio ou abriam espaço para que mais alguém pudesse também chegar perto daquele performer com muitos ao seu lado.
O espectador tinha completa liberdade para mover-se pela sala, caminhar por entre aqueles corpos estendidos, escolher algum performer para deter-se um pouco mais. Dali mais alguns instantes, quem sabe, escolher outro. Não havia nenhuma ordem ou indicação a seguir. Quem ficou de longe por algum tempo, podia perceber a distribuição de todos aqueles corpos – performers e espectadores – pelo espaço. Uma instalação cênica, visual, performática. Em alguns momentos, inclusive, espectadores misturavam-se de fato aos performers, também deitados, de olhos fechados. Em alguns momentos, um longo silêncio era instaurado, até que os textos recomeçassem.
Não era possível, pelo menos não foi para mim, acompanhar de fato o que diziam os performers e, muito menos, estabelecer conexões diretas entre os discursos deles. Essa, desconfio, não era mesmo a intenção. Os textos sussurrados pelos atores são fragmentos de escritos teatrais de autoria de Rodrigo Garcia, mesmo autor e diretor de 4, espetáculo que abriu o Mirada, e levou os galos, citados no início deste texto, ao palco. O argentino radicado na Espanha tem uma escrita bastante peculiar, fragmentada, com textos virulentos, frases de efeito, que podem discorrer sobre relações humanas destroçadas, capitalismo, insegurança, amor.
Ouvi, por exemplo, um fragmento de uma história de um pai (ou mãe), que embebedava a criança antes de deixá-la na escola, para que ela fosse capaz de lidar com aquele sistema educacional. Alguma frase sobre amar e conformar-se. Outra dizia que a vida era uma merda. E que mesmo pessoas que estiveram à beira da morte, sobreviveram a um câncer, voltam a ter uma vida merda. Ouvi também um adolescente contando que decidiu tomar as rédeas da própria vida. Em algum momento, lia Sêneca enquanto os amigos viam Harry Potter. Ou ainda: “Ao liberalismo, tende piedade dos que não podem comprar. (…). Ao FMI, tende piedade da Argentina. Às lágrimas, tende piedade dos fracos. ”
Em World of interiors, o fluxo de pensamentos dos próprios espectadores eram parte inerente da experiência proposta pelos portugueses. Enquanto deitávamos ao lado de alguém, aquele discurso longe e sussurrado do performer, esforçando-nos para ouvir alguma coisa, era quase impossível impedir a mente de vagar e construir os nossos próximos jorros discursivos internos.
A potência da experiência no teatro, no entanto, talvez esteja em conseguir produzir efeitos significativos, dos quais não tomamos, às vezes, nem consciência. Mas guardamos em algum lugar da memória. Como o cheiro daquela comida do espetáculo, a rua onde ouvimos aquela história de amor, a cena que me remete às minhas próprias questões. Nesse sentido, a impressão é de que a potência de World of interiors se esgarça, se esvai, muito rapidamente. Talvez porque os espectadores estejam interagindo com corpos de performers praticamente inertes; talvez pela dificuldade em atentar-se ao texto e conseguir então fazer ressignificações simbólicas desses discursos.
Na experiência estética proposta por Ana Borralho e João Galante, o espectador precisa apoderar-se da sua autonomia. Estar disposto a compor ele próprio o tipo de relação que deseja estabelecer com o trabalho. Um espectador que precisa mover-se, realizar. E, também, lançar-se ao risco. Nesse caso, o imponderável talvez esteja principalmente em nós mesmos: os nossos próprios pensamentos, lacunares, caóticos, belos ou cruéis.
*Pollyanna Diniz é jornalista, crítica e pesquisadora de teatro. Mestranda em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), há cinco anos edita e produz conteúdo para o blog Satisfeita, Yolanda?, do qual é uma das idealizadoras. Participou de coberturas de festivais e mostras como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (2014, 2015 e 2016), a Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo (2015) e a Bienal Internacional de Teatro da USP (2015). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.
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