PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] There´s no place like home
Por Pollyanna Diniz, do blog Satisfeita, Yolanda?
No artigo intitulado Uma redefinição do teatro político, escrito por Patrice Pavis e publicado pela revista Sala Preta em 2013, o pesquisador propõe um questionamento cada vez mais recorrente no teatro realizado nesta década: “Como ilustrar na cena questões sobre a política ou a financeirização da economia, como esclarecer processos cada vez mais complexos que escapam, em grande parte, até mesmo aos especialistas? ”. Pavis continua sua argumentação afirmando que tanto o realismo quanto o naturalismo não necessariamente conseguem, no cenário atual, dar conta de lidar com esse real. E, mais adiante, esboça algumas possibilidades: “A escrita, mesmo a poética, por vezes é o melhor meio de acessar o real. A ficção, a artificialidade do jogo, a intensidade são necessárias para a descoberta de elementos do real e para a sua elucidação. O trabalho artístico e formal (mas não formalista) é uma etapa indispensável quando as formas e a dramaturgia esforçam-se para revelar conteúdos sócio-políticos ou psicológicos. A arte é, ou se torna, uma das melhores ferramentas para questionar a realidade e a política”.
O espetáculo Brickman Brando Bubble Boom – BBBB, do Agrupación Señor Serrano, dialoga perfeitamente com as ponderações trazidas à discussão por Patrice Pavis. Desde o título, já nos deparamos com o anúncio de um entrelaçamento que, na encenação, será verificado em vários níveis. Tanto nas narrativas, na linguagem, quanto nos dispositivos tecnológicos e nas técnicas utilizadas para a elaboração de um pensamento construído ao longo de toda a montagem. Talvez o seu ponto culminante, sua síntese, seja a cena em que os atores/performers/técnicos destroem uma enorme casa de isopor que eles haviam montado em cena.
O mote disparador para o espetáculo do grupo, fundado em 2006, em Barcelona, é a crise no setor imobiliário da Espanha. Desde 2008 – dado divulgado durante a própria montagem – foram mais de 500 mil despejos na Espanha. O estouro da bolha imobiliária, um processo bastante semelhante ao que aconteceu nos Estados Unidos, se desdobrou em diversos âmbitos no país. Como então trazer para o teatro essa temática, sem que seja feita uma reprodução documental ou uma imitação da realidade? Como, além disso, ampliar as possibilidades de apreensão desse real que se mostra tão complexo e brutal?
Em BBBB, o espectador é apresentado a duas histórias: a primeira delas, ficcional, conta a trajetória de sucesso de John Brickman, um dos maiores construtores da Inglaterra, que seria um dos criadores do sistema hipotecário internacional. Leia-se: a possibilidade de que todas as pessoas pudessem comprar suas casas, realizar um sonho, mesmo que a juros exorbitantes. Brickman nasce dentro de uma família muito pobre, que vivia numa casa de madeira, pintada de azul. E termina a vida infeliz, apesar de ter se tornado um milionário e morar numa grande mansão. A segunda narrativa é a de Marlon Brando que, desde cedo, teve problemas com os pais, um inadaptado, comprando mansões, mas sempre em busca de um lar de fato.
Apesar das histórias serem contadas dramaturgicamente de maneira linear, até dispostas em capítulos, os recursos utilizados pelo grupo se mostram criativos e engenhosos e se desdobram em várias escalas (inclusive de tamanho mesmo) diante do público. A narrativa de Brickman é trazida através da projeção de filmes da carreira de Brando, como se o ator interpretasse a vida do construtor; e também da manipulação ao vivo de objetos micro, como bonecos em miniatura na frente de maquetes de casa. A edição de todas essas imagens é feita ao vivo. Um dos integrantes do grupo está num dos cantos do palco, com todo o aparato, como computadores, para sincronizar as projeções. Além disso, no caso da história de Brickman, quase como justaposição, um dos atores faz a dublagem e imita os trejeitos de Brando nos filmes ao lado da projeção.
Durante a encenação, o público também vê projetadas outras estruturas narrativas que costuram e ampliam as possibilidades de diálogo e reverberação das narrativas. Por exemplo, imagens do programa Extreme Makeover, que reforma casas de pessoas pobres, com histórias de vida difíceis. Um modelo de exploração, aliás, reproduzido também nas televisões brasileiras. BBBB nos faz questionar o esforço do capitalismo em nos fazer acreditar no trabalho árduo, na compra de uma casa como necessidade, no engodo da meritocracia.
O Agrupación Señor Serrano se define como “una compañía de teatro que crea espectáculos originales basados en historias emergidas del mundo contemporâneo”. Em BBBB, assim como noutros espetáculos de grupos que têm a mesma premissa do espanhol, não há uma preocupação em dar conta de forma totalizante da amplitude e da complexidade da realidade, o que seria um objetivo inviável, mas de levantar questionamentos e propor olhares, trazendo à cena problematizações e possibilidades de apreensões. O espetáculo pode ser tomado como mais um exemplo significativo de como o teatro, uma arte de caráter coletivo, está estabelecendo relações com o político e o real, oferecendo ao espectador outras chaves de aproximação com esse mundo.
Pollyanna Diniz é jornalista, crítica e pesquisadora de teatro. Mestranda em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), há cinco anos edita e produz conteúdo para o blog Satisfeita, Yolanda? (www.satisfeitayolanda.com.br), do qual é uma das idealizadoras. Participou de coberturas de festivais e mostras como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (2014, 2015 e 2016), a Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo (2015) e a Bienal Internacional de Teatro da USP (2015). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.