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PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] Teatro como jogo e investigação

Espetáculo argentino traz discussões sobre o exercício teatral e a elaboração de pensamento

Por Pollyanna Diniz

Quando um espetáculo de teatro, em sua encenação, embrenha-se nos seus próprios meandros, discutindo os procedimentos que levaram à sua elaboração, expondo alternativas e decisões tomadas durante sua construção, corre-se o risco de que essa autoreferência se mostre bastante particular. Que não consiga ser redimensionada, ampliada a ponto de servir como possibilidade de leitura para o teatro como fenômeno. Há que se ter muita habilidade para falar a partir do próprio umbigo, refletindo, porém, sobre questões maiores, que podem ser transpostas a outros contextos. Em Las Ideas, o diretor, dramaturgo e ator argentino Federico León conseguiu uma maneira engenhosa de se debruçar, a partir do seu trabalho, em discussões fundantes do teatro, mas que continuam atuais, sendo debatidas em vários âmbitos, seja profissionalmente, no círculo acadêmico, por exemplo, ou de forma mais espontânea, pelos espectadores do nosso teatro contemporâneo.

A primeira delas talvez seja a questão da representação. Federico León está em cena acompanhado pelo ator e músico Julián Tello; e os dois “representam” parceiros de trabalho, chamados pelos seus próprios nomes, discutindo as possibilidades para um novo projeto teatral. O tom dessa atuação é o mais informal possível, como uma conversa no ambiente íntimo do estúdio de trabalho. Chegar a esse estado de não representação e, mais ainda, problematizá-lo de maneira convincente, mas de forma a parecer quase casual, no entanto, exige elaboração dos seus criadores.

Em determinado momento da conversa, os dois fumam. Entre outras coisas, León indaga Tello se ele não fica com preguiça de atuar depois de fumar. Uma pergunta sobre atuação dentro da própria atuação que já se desenrola, a partir de uma situação que está acontecendo de fato e não apenas é citada, o ato de fumar. Nesse mesmo sentido, a complexificação continua com algumas fricções nessa ideia da não representação, por exemplo, quando Tello teoricamente tira um cochilo em cena, mas o público sabe que ele está “fingindo”; ou quando alguns elementos, como os microfones, contrastam com o suposto caráter intimista daquele momento.

A dimensão processual do trabalho teatral está posta em cena de forma muito evidente; estamos numa época em que as experiências – e os procedimentos que nos levam até elas – são consideradas mais importantes do que o resultado artístico em si, como produto acabado. Nesse sentido, o espetáculo explode as fronteiras da discussão sobre teatro para trazer à tona questões como a construção do pensamento. De que forma se dá essa elaboração do pensamento quando computadores e gadgets já se tornaram praticamente extensões do nosso corpo? As várias janelas abertas na área de trabalho do computador servem como metáfora para a nossa própria organização de conhecimento, que funciona como hipertexto, de forma muito mais caótica, com nós e conexões não lineares. O modo como classificamos e armazenamos as informações no computador, por exemplo, pode revelar algo sobre a maneira como nosso sistema de pensamento se processa.

Um dos momentos que poderiam servir bem ao propósito de sintetizar o espetáculo é a cena em que várias camadas de realidade – e pensamento – são expostas a partir do uso do recurso do efeito Droste, imagens que aparecem dentro delas mesmas e vão se repetindo. A explicação pode parecer confusa, quando a cena deixa esse mecanismo bem mais claro. León e Telló estão conversando e assistindo a uma gravação de um dia qualquer, enquanto são eles mesmos gravados novamente; logo adiante, decidem ver essa gravação mais recente, ou seja, a gravação da gravação. Janelas que refletem diversas camadas de realidades.

lasideas

Em toda essa discussão que Las Ideas carrega sobre representação, processo, elaboração de pensamento, estão imbricadas várias outras que dizem respeito, por exemplo, aos dados de realidade e ficção na encenação e à verossimilhança. Certas ilusões dramáticas são destrinchadas diante do público, desde o processo de trabalho, evidenciado no desenrolar da peça e em camadas, como hipertexto, como quando León apresenta ao parceiro um vídeo de uma garota com síndrome de Down fotografando animais disfarçados de outros animais. Os animais estão atuando? E a garota? Logo adiante, ele exibe outro vídeo, desta vez mostrando o registro dos bastidores da gravação.

Por exemplo: existe alguma diferença para o espectador se o whisky que o ator bebe em cena é realmente whisky? Ou se o dinheiro rasgado no meio do espetáculo é uma nota falsa ou verdadeira? Para o teatro, faz algum sentido ter uma máquina que atesta a veracidade dessa cédula? E se essa máquina utilizada também for falsa? Quando a dramaturgia é esgarçada dessa maneira, de modo proposital, levando à percepção da falta de limites que pode ter esse tipo de operação não só no teatro, mas em todos os âmbitos, a sensação no espectador pode ser de exaustão diante da impossibilidade e da ausência de um ponto final nesse processo. Quando se dá, mesmo que superficialmente, o entendimento das proposições e das estratégias utilizadas pelo espetáculo, a dramaturgia adquire um ritmo mais lento, até a resolução encontrada para terminar a encenação.

Mesmo que pareça uma montagem bastante cerebral, disposta a investigar os procedimentos de elaboração do jogo teatral e, de forma mais ampla, da própria construção do pensamento, os atores traçam um percurso marcado pela leveza das situações banais, cotidianas. E, até, porque não, do ridículo e do inusitado de algumas estratégias adotadas no desenrolar de algumas cenas. Voltamos, como tudo se entrelaça, à questão da representação: são só dois caras comuns, tentando minimamente destrinchar ideias numa reunião informal de trabalho.

O jogo de ping-pong, uma cena logo do início do espetáculo (a mesa de trabalho, que também serve às projeções realizadas na encenação, é uma mesa de ping-pong), talvez sirva como metáfora não só para as questões trazidas pelo espetáculo, como as ideias que se desenrolam nesse jogo dialético de discussões, mas para o próprio teatro. Assim como no jogo, umas das graças do teatro é que não há como se negar ao risco, ao acaso, ao imponderável da realidade.

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