PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] O Som das Cores
Um mundo além das aparências
por Maria Eugênia de Menezes
Teatrojornal – Leituras de Cena
Nem tudo é o que parece. Nem todas as perdas são para o mal. No espetáculo “O Som das Cores”, uma criação da companhia mineira Catibrum de Teatro de Bonecos, tudo está um pouco fora de lugar. E há lições a serem aprendidas em meio a essa desarrumação. Na obra infantil de 2013, com direção e dramaturgia assinadas por Lelo Silva, conhecemos a história de Lúcia, uma menina de 15 anos que, de repente, se descobre cega.
Para fazer dessa deficiência adquirida um mote para uma obra fantasiosa, a trama não será exposta diretamente, mas relatada por meio de metáforas. Lúcia, por exemplo, não se diz cega – crê ter perdido seus olhos. Seu cachorro de estimação, Tobias, os teria levado. Tudo parte de uma brincadeira. E pretexto para que ela se entregue a uma jornada mágica pela metrópole, atravessando túneis de metrô e passagens urbanas desconhecidas.
No teatro de animação, imagens descoladas da realidade podem ser criadas. A partir da manipulação de bonecos e objetos, Lúcia entra em contato com monstros e dragões, pode conversar com portas, passarinhos e com um anão de jardim, é capaz de voar valendo-se apenas do poder da imaginação. Em verdade, essa é a mensagem que conduz o espetáculo: a ideia de que não existem limitações para uma mente suficientemente livre.
É minucioso o trabalho dos manipuladores de bonecos. Conseguem não apenas movê-los, mas emprestar-lhes vida e ânimo. Cada uma das figuras é dotada de detalhes e efeitos que ajudam na caracterização dos personagens. Os cabelos de Lúcia, seus óculos, seus gestos expressivos. Há apuro ainda nos outros recursos utilizados: uma iluminação que serve à aura de sonho e fantasia ambicionada, uma cenografia bem acabada, uma bela trilha sonora original, composta pelo grupo Graveola e o Lixo Polifônico. No Mirada, porém, percebe-se que parcela considerável desse detalhamento se perdeu. Inadequados pareciam tanto a dimensão do palco quanto o tamanho da plateia para qual a peça foi apresentada, no Teatro do Sesc Santos. As cenas ocorrem em um espaço pequenino, delimitado por uma parede de vidro, o que cria impressão de estarmos diante de uma espécie de caixa de brinquedos. Uma caixa que ia perdendo encanto à medida que o espectador se distanciava da ribalta.
Para construir a trama, o dramaturgo se valeu de duas obras como referência: o livro homônimo do escritor taiwanês Jimmy Liao e o poema “O Cego”, do alemão Rainer Maria Rilke. “Só sensações de tato, como sondas, captam o mundo em diminutas ondas”, dizem os versos em tradução de Augusto de Campos. As fontes literárias marcam a trajetória do grupo, criado em 1991. Nos títulos que compõem o seu repertório, há espaço para autores como Guimarães Rosa, fonte de inspiração para o espetáculos “Lágrima” e “Trem da Memória”, e Miguel de Cervantes, referência direta para “Triste Figura”.
Apesar de apoiar-se em obras consistentes, “O Som das Cores” tem na dramaturgia sua mais evidente fragilidade. A pretensão de construir um enredo poético esbarra na inconsistência do texto. Mensagens simplistas não levam em consideração à complexidade dos temas tratados. Com elipses mal realizadas, passagens inteiras parecem desvinculadas do restante da trama, sem que alcancem o efeito pretendido. Cenas como a que Lúcia voa dentro de um guarda-chuva carregam a aparência de certa gratuidade. Não emocionam. Nada acrescentam à história que está sendo contada. Querem apenas sublinhar, sem efeito, um lirismo que inexiste.
*Maria Eugênia de Menezes é jornalista e crítica teatral, atuou como repórter e crítica de teatro do Caderno 2, do jornal O Estado de S.Paulo, com experiência na cobertura de festivais no Brasil e no exterior. Também escreveu na Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas como o Circuito Cultural Paulista e membro do júri de prêmios como Prêmio Bravo! de Cultura, APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e Prêmio Governador do Estado de S.Paulo.
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