PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] O sertão em imagens expressivas
Apesar de integrada ao texto, a concepção visual tende a concentrar a atenção do espectador
Por Daniel Schenker
A Cia. Teatro Balagan, conduzida pela diretora Maria Thaís, envereda pelo sertão por meio de narrativas reunidas na dramaturgia de Luís Alberto de Abreu. No palco, esse universo é sintetizado pelas expressivas máscaras mostradas, mas não portadas, pelos atores de Cabras – Cabeças que Voam, Cabeças que Rolam. Ao invés de cobrirem os rostos com as máscaras, os integrantes do elenco fazem de seus rostos as próprias máscaras ao revesti-los ou ocultá-los parcialmente com elementos (galhos ressecados, argila) que remetem à geografia sobre a qual se debruçam.
Geralmente, quando o ator cobre o rosto com a máscara, o corpo é ativado de maneira extremada, como se uma corrente elétrica passasse a percorrê-lo. Juízos de valor à parte, não é exatamente o que se vê nesse espetáculo, marcado por movimentos medidos, coreografados, sincronizados, evidenciadores da procura por precisão, por uma cena limpa. A diretora dá a impressão de ter buscado junto ao elenco certa neutralidade, de modo a evitar uma fusão entre eles e os personagens – até porque os atores se distanciam para visitar, durante todo o tempo, o lugar da narração.
Maria Thaís investe numa proposta de atuação coral. Valoriza a integração do conjunto em detrimento de solos. Parece haver uma sintonia entre essa escolha e a dramaturgia, tendo em vista que os atores frequentemente partilham o mesmo texto, frisando, desse modo, que não se trata do drama de um indivíduo, mas de todos. De qualquer modo, se por um lado a unidade almejada pela diretora evita desníveis mais contundentes entre os atores, por outro a linearidade predomina, sensação que vem à tona no registro vocal. Cabe mencionar eventuais lampejos em momentos específicos de cada ator (um pouco mais frequentes no trabalho de Jhonny Muñoz), nos quais as palavras soam mais apropriadas pelos intérpretes. Mas, apesar do notável profissionalismo que atravessa a montagem, também refletido nos atores, estes parecem acessar a casca da palavra, sem preenchê-la, o que distancia os textos do público.
A plasticidade da cena tende a concentrar as atenções, mesmo que as escolhas estéticas não irrompam como criações arbitrárias em relação à dramaturgia. Responsável pelos excelentes figurinos, Marcio Medina prioriza o branco e azul no primeiro ato e adere à cor de carne e ao tom terroso no segundo. O expressivo cenário, também de Medina, sugere o mundo do sertão, mantendo, porém, abertura para possíveis associações, por meio dos bambus, do chão revestido por material que simboliza a terra e do grande sol alaranjado. A iluminação de Aline Santini emoldura a cena com cores fortes, intensas, aproveitando a parede de pedra da Casa da Frontaria Azulejada, onde o espetáculo foi apresentado dentro da programação do Mirada.
O fato de a concepção visual predominar ao longo da encenação não impede que o público perceba influências e a estrutura da dramaturgia. Logo no início, no âmbito temático, os personagens sinalizam a possibilidade de antever o futuro por meio da previsão do modo como se dará a própria morte. Já a estrutura narrativa gera uma constante presentificação do passado, na medida em que, por meio desse procedimento, os atores revisitam acontecimentos no instante em que falam sobre eles. O texto evoca um passado mais remoto por meio da tragédia grega. A conexão com a tragédia é sugerida através da valorização de uma das características centrais do herói: a secura, a contenção (“sustentar a dor sem lágrimas”), na contramão da emoção esgarçada, do tom lamentoso. Em dado instante, um ator derrama um líquido vermelho sobre o rosto, coberto por um pano, imagem que remete ao Édipo de Sófocles, no instante em que fura os próprios olhos. Há, como se pode perceber, um concentrado de tempos atravessando a montagem.
Apesar de eventuais restrições, Cabras – Cabeças que Voam, Cabeças que Rolam confirma a seriedade da Balagan, uma companhia conhecida pela realização de espetáculos que resultam de longo processo de investigação. O rigor do conjunto é detectável ainda na direção musical de Dr. Morris. Maria Thaís vem prestando importante constribuição para a cena através da articulação entre teoria e prática.
*Daniel Schenker é bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e da revista Preview. Escreve para os sites Teatrojornal (teatrojornal.com.br) e Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. É membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio, Questão de Crítica e Reverência.
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