PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] MIRe VEJA, Mi(g)Re (E) VEJA
Ou Como resistir à visão do espetacular?
Por Welington Andrade
“… é teatral o que quer e pode ser teatro. Essa abordagem hegeliana e teleológica aceita, ao contrário da outra, o movimento e a contradição interna na história. Seja nostalgia de um modelo, sonho de uma essência, retraimento sobre uma especificidade, querer ou poder – desejo –, a teatralidade é falta de teatro. A modernidade concebe o teatro como falta, desejo e procura de teatro, em lugar de fazer do teatro uma arte definida e consumada”.
Geneviève Jolly e Muriel Plana, Léxico do drama moderno e contemporâneo.
Em Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna, Jonathan Crary convida à reflexão a respeito de como a arte e a cultura contemporâneas vem lidando com a categoria da percepção, desdobrada diretamente nos modos de produção da subjetividade. O professor de arte moderna e teoria da arte na Universidade de Columbia analisa as alterações significativas no regime de percepção criado pela sociedade industrial do século XIX cujos impactos se estendem aos dias de hoje. Examinando o fenômeno da urbanização acelerada vivido no Ottocento como uma conquista do capitalismo industrial, Crary detém-se sobre o problema da atenção e da subjetividade modernas a partir da relação que se estabelece entre percepção, sensibilidade, pesquisa científica e experiência estética. Os conceitos debatidos pelo autor podem migrar da esfera do século de Baudelaire e ser analisados à luz do início desse novo milênio, no qual a cultura do espetáculo tem caráter marcadamente disciplinador. “O que importa para o poder institucional, desde o final do século XIX”, afirma o autor, “é apenas que a percepção funcione de tal modo a garantir que um sujeito seja produtivo, controlável e previsível, que seja adaptável e capaz de integrar-se socialmente”.
A partir de tal enfoque, podemos afirmar que Birdie, do Agrupación Señor Serrano, da Espanha, constitui uma experiência teatral sui generis cuja grande qualidade é levar ao descondicionamento do mais hipertrofiado órgão da percepção humana – o olho – para que ele desconfie do que, a princípio, vê. Acreditamos tratar-se mesmo Birdie de uma criação teatral, uma vez que as palavras “espetáculo” e “espectador” provêm da forma latina “spectare”, que significa “olhar, observar atentamente, contemplar”, derivada, por sua vez, da forma grega “optiké”, cujo sentido é “a arte de ver, a ciência da visão”. Implicando a própria palavra “teatro” em grego a ideia de “lugar de onde se vê”, pode-se afirmar que a arte da cena, desde seu nascimento, elegeu o olho humano como sede da percepção do espectador. Assim, nada mais natural que um dos trabalhos que o grupo espanhol trouxe para este Mirada 2016 (o outro é Brickman Brando Bubble Boom – BBBB) tenha tido como ponto de partida uma imagem fotográfica. Captada em 2014 por José Palazón e rapidamente difundida na internet, ela retrata, em primeiro plano, um campo de golfe em Melilla (um enclave espanhol em território marroquino) e, em segundo plano, uma dezena de imigrantes africanos empoleirados sobre a cerca que separa aquela cidade do território do Marrocos. (À direita, é possível ver ainda um policial dirigindo-se ao grupo, anunciando uma abordagem violenta).
A leitura que se pode fazer desse instantâneo – convém lembrar, aqui mais do que nunca, que o étimo de “ler” aponta para a ideia de “colher com os olhos” – é a mais rugosa possível do ponto de vista semântico e está na base da nomeação do espetáculo. O vocábulo “birdie” pode significar em inglês tanto pássaro como um tipo de jogada no golfe. Dessa ambiguidade nascem então inúmeras outras ambivalências, estendidas ao nível da fluidez de sentidos – fruída, formalmente no espetáculo, pelo olho do espectador, que reconhece imagens de migrações humanas e animais, de aves migratórias e cenas fragmentadas de Os pássaros, de Hitchcock, editadas artesanalmente e exibidas, ora sob a narração de uma locutora que presta informações pontuais, ora ao som de uma trilha musical vibrante. Estabelecendo de modo lúdico algumas ilusões óticas dispostas a desautorizar o exercício da centralidade da visão (dependente de um olhar fixo, monocular), a experiência do Agrupación Señor Serrano nos propõe um curto-circuito perceptivo, ao nos oferecer para o (des)entendimento de nossa visão e audição uma complexa massa de estímulos, signos e materiais heterogêneos incapazes de serem reduzidos a um único sentido.
Afirma Patrice Pavis em seu Dicionário de teatro que “seja sob forma do corpo pensante, seja sob a do corpo no espírito”, “a percepção do espectador situa-se no lugar estratégico no qual ocorre a experiência teatral em sua complexidade e irredutibilidade”. Ao falar sobre migração do ponto de vista político, Birdie conduz também o espectador a um processo que podemos chamar de migração da subjetividade. Passagem de uma região ordinária, sensata, plagiária (na acepção de Roland Barthes) a um plano líquido, fluido, extraordinário – onde um sentido captado de modo subjetivo nunca fica satisfeito de estar. Pois bem, Birdie constitui um exercício de figuração em torno das ideias de migração de sentidos e de disciplina do olhar, por meio das quais os integrantes do Agrupación Señor Serrano inquirem a respeito de para onde miramos nosso olhar e o que de fato vemos.
*Welington Andrade é doutor em literatura brasileira pela USP, na área de dramaturgia. É professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero desde 1997, crítico de teatro da revista Cult e autor de um dos capítulos da História do teatro brasileiro: do modernismo às tendências contemporâneas (Editora Perspectiva/Edições Sesc-SP, 2013).
*Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.