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PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] Lutar contra a morte é lutar contra o esquecimento

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Por Maria Eugênia de Menezes 
Teatrojornal – Leitura de Cena

Para conceber “Viúvas – Performance sobre a Ausência”, o grupo gaúcho “Oi Nóis Aqui Traveiz” apoiou-se em uma obra literária: o livro “Viudas” – lançando originalmente por Ariel Dorfman, em 1981. Mas a tentativa de compreender o que está em jogo permite ir além dos limites estritos do romance que lhe deu origem, convocando referências externas, sejam elas literárias ou históricas. A mitologia grega, as ditaduras militares que marcaram a América Latina, o narrador de Walter Benjamin, os relatos femininos dos horrores da guerra escritos por autoras como Herta Müller ou Svetlana Alexijevich. Muitas são as possibilidades de se aproximar do objeto polifônico que constitui “Viúvas”. Uma narrativa que abre portas para diálogos sobre o passado e sobre o presente. Sobre problemas que seguem sem solução, mas também sobre novas perguntas que não cessam de surgir.

Uma fábula condensa os conflitos a serem tratados. Em uma ilha, Sophia está sentada sobre uma pedra e observa as águas – parece estar de guarda, como se na expectativa por alguém que vai chegar. Enquanto espera, é surpreendida por um magnata e seus capangas, estrangeiros que vieram para se apropriar do povoado. Todos os homens, que ali antes viviam, desapareceram. Por se insurgirem contra algum tipo de nova ordem – que não chega a ser esmiuçada ao longo da peça – foram mortos e tiveram seus corpos subtraídos. Sophia é uma anciã que perdeu o pai, o marido, os filhos. Assim como ela, todas as outras mulheres que ali habitam sofreram perdas semelhantes. E o que impera, em meio a tantas ausências sem explicação, é o silêncio.

Interpretada pela atriz Tânia Farias, Sophia conduz essa história. É protagonista por ser aquela que tem a coragem de dizer. Questiona o estabelecido, clama pelo direito de prantear seus mortos e dar-lhes sepultura. Quer saber o que aconteceu, quer conhecer a verdade, quer contar o que passou. Não se conforma com o que está dado. Não aceita simplesmente esquecer. Consideram-na, por isso, louca. Se o louco hoje é o alienado, aquele que perdeu a conexão com a realidade, vale lembrar que não foi sempre essa a visão majoritária sobre a loucura. O iluminismo, a idade moderna e sua exaltação à racionalidade quiseram eliminar a insanidade do espaço público e segregá-la. Ao longo da história, porém, o louco também já foi visto como o detentor da verdade. (Idei a da qual a literatura e o teatro se apropriaram amplamente, como nos mostram os personagens de Shakespeare e Miguel de Cervantes).

Ao escrever “Viúvas”, Dorfman fazia uma evocação do que se passava à época no Chile. O argentino viveu 17 anos no país, chegou a integrar o governo de Salvador Allende e partiu para o exílio após o golpe que conduziu o general Pinochet ao poder. Para conseguir publicar o livro e escapar à censura, transpôs a trama para uma cidadezinha grega. Apenas anos depois, em 1991, uma adaptação do texto para o teatro – realizada em parceria com o dramaturgo norte-americanoTony Kushner – devolveu a história ao contexto sul-americano. Na versão do Ói Nóis, não existe um lugar determinado, nem uma época sugerida. Vestes coloridas indicam uma raiz latina, festiva. Mas se poderia imaginar um povoado qualquer onde haja opressão e disputa de poder. No pró logo do espetáculo, que ocorre dentro do barco que leva os espectadores até a pequena ilha em que se dará a encenação, um homem fala de seu exílio e da inutilidade de localizar qual é o seu país. “Quando alguém está longe de sua pátria e não pode conciliar o sono e até os cachorros não latem da mesma forma, foi então que eu pensei: “Minha pátria? Importa tanto? De verdade, eu tenho que nomeá-la?”, ele pergunta.

Mesmo abstendo-se de uma localização geográfica, a montagem da companhia gaúcha costura laços com a ditadura militar brasileira e sua herança nefasta de mortos e desaparecidos. Em Porto Alegre, onde estreou em 2011, “Viúvas” era encenada em uma ilha onde antes funcionava um presídio. Espaço que, durante os anos 1960 e 1970, abrigou presos políticos. A escolha se relaciona claramente aos princípios do “teatro de vivência” proposto pelo grupo, fortemente inspirado pelo norte-americano Living Theatre e suas tentativas de dissolver ao máximo os limites entre palco e plateia. Quem assiste toma o lugar de testemunha participativa, obrigada a se deslocar, a experimentar cheiros e percalços do local, a integrar-se em situações de festa e de trabalho.

Para que fosse apresentada dentro do Mirada, a obra foi transposta para uma ilha, sede do museu histórico Fortaleza de Santo Amaro da Barra Grande, fortificação construída em 1584. Por mais adequado que seja o espaço, porém, essa transposição não se deu sem algumas dificuldades. Fica nítida certa dificuldade do grupo em apropriar-se completamente do espaço – ao menos se comparada à apropriação que faziam do local ocupado em Porto Alegre. Uma falha no equipamento de luz também prejudicou a apresentação, comprometendo alguns de seus efeitos. Por último, também vale recordar que a duração do espetáculo foi reduzida, dando-lhe um tom ligeiro na resolução das cenas, sem o vagar necessário para envolver o espectador no que est&aa cute; em cena.

Do mesmo autor, o Ói Nóis já havia encenado “A Morte e a Donzela”. Mas cabe também fazer a ligação entre esse espetáculo e outros títulos recentes do seu repertório. Desde sua criação, em 1978, o coletivo se coloca em posição de repúdio aos valores dominantes. Isso se reflete seja em sua dinâmica de trabalho – que costuma renegar as hierarquias tradicionais que separam as posições de diretor, autor e ator – seja nas temáticas de suas obras. Seu mergulho nos mitos femininos, revisitando grandes personagens clássicas como Medeia, Cassandra e Antígona sob nova ótica, é exemplo eloqüente disso. Em “Medeia Vozes”, levado à cena em 2013, o grupo apoiava-se na leitura proposta pela alemã Crista Wolf, est udiosa que questiona a maneira como as tragédias gregas representam suas mulheres, sempre sob perspectiva masculina. Para relativizar a imagem de assassina dos próprios filhos que guardamos da tragédia de Eurípedes, Wolf traz Medeia como uma estrangeira estigmatizada e punida pelos poderosos da Grécia.

Os homens todos foram mortos, mas as mulheres puderam ficar. Em “Viúvas”, questiona-se também a ideia de um feminino naturalmente inerte. Como se todo o poder de contestação da ordem e da opressão fosse masculino. Como se uma mulher não representasse ameaça, mas apenas aceitação, resignação, obediência. Em uma das mais belas passagens da obra, a anciã fala a sua neta sobre a necessidade de contar histórias.

Cada narrativa sofre apropriações e adaptações de acordo com a época em que é contada. O que conhecemos são as histórias dos que venceram. Cabe ao narrador ir contra essas versões hegemônicas, assenhorar-se do poder de rememorar, ir contra o esquecimento. Sophia representa a memória: “Há histórias que pedem a gritos para ser contadas e, se não há palavras ainda para elas, cria-se pele para esperar o momento. O vento as leva, e a fumaça, e o rio, as palavras de cada história encontrarão o caminho até o lugar mais solitário e afastado, sempre que haja alguém que queira escutar”.

*Maria Eugênia de Menezes é jornalista e crítica teatral, atuou como repórter e crítica de teatro do Caderno 2, do jornal O Estado de S.Paulo, com experiência na cobertura de festivais no Brasil e no exterior. Também escreveu na Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas como o Circuito Cultural Paulista e membro do júri de prêmios como Prêmio Bravo! de Cultura, APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e Prêmio Governador do Estado de S.Paulo.

*Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.