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PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] Hamlet – é preciso dizer de novo

Por Maria Eugênia de Menezes (site Teatrojornal – Leituras de Cena)

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Mais um Hamlet. E por que mais um? É verdade que cada nova versão – ou cada boa versão, ao menos – carrega em si uma leitura própria da obra tão conhecida. Também não faltam motivos para revisitar o texto mais montado de todos os tempos. E o ator Emanuel Aragão, que interpreta esse Hamlet – Processo de Revelação”, enumera diversos deles. Fala sobre o personagem como um precursor do existencialismo, de sua pioneira noção de individualidade dentro do teatro, de sua mensagem de livre arbítrio, da dificuldade de fazer escolhas. Mas nenhuma dessas razões, ele admite, resolve a questão: por que voltamos a Hamlet? Se ainda existe tanto por ser dito, por que seguir a repetir as palavras que todo mundo (ou uma parcela substancial das platéias de teatro) já escutou?

Os Irmãos Guimarães são os responsáveis pela direção desse “Processo de Revelação”. Criado em Brasília, o coletivo trafega, há mais de 20 anos, entre o teatro e as artes visuais e, continuamente, reafirma a preponderância da experiência sobre a representação. No lugar do teatro stricto sensu podem entrar outras formas de criação. Seja por meio de uma performance ou de uma instalação, o essencial é instar o público a descobrir novas possibilidades de olhar e de se relacionar com um objeto artístico.

Para concretizar tal ambição, Adriano e Fernando Guimarães já se detiveram sobre autores consagrados da literatura dramática – especialmente sobre Samuel Beckett, que tanto material lhes rendeu para montagens e investigações. Agora, voltam a Shakespeare. E o verbo voltar, neste caso, não foi utilizado para fazer referência a criações anteriores dos diretores, mas a uma imagem do bardo que a atual encenação reafirma. Como se o teatro shakespeariano se impusesse como um destino inescapável. Pode-se passar a vida a flanar por aí. Dedicar-se a investigar muitas coisas, a montar muitos autores. Mas o grande dramaturgo britânico paira sobre todos. E a hora do acerto de contas terminará por chegar.

No encontro entre esses criadores e a saga do príncipe da Dinamarca não se dá propriamente a montagem de uma peça. Espectadores irão presenciar e participar de certo ritual de dissecação. E o que devem encontrar não será propriamente a grande revelação sobre o título tão celebrado, a leitura definitiva. Mas uma sincera aproximação entre artista e personagem, entre autor e ator, entre tempos que podem coexistir ainda que separados por mais de 400 anos. Sinceridade soa como termo fora do lugar quando se está a falar de teatro. Nesse pacto de mentiras que se dá entre palco e platéia, contudo, há espaço para muitos arranjos. Naqueles mais felizes, cabe, inclusive, a verdade.

No lugar de uma encenação de Hamlet, acompanha-se a uma desconstrução, uma apresentação de questões e aspectos contidos no texto. Existe um quê de leitura comentada. Em diversas passagens, Emanuel Aragão discorre sobre as intenções e arranjos que cercam determinadas cenas e diálogos. Convida os espectadores a reagir e a participar da discussão. Há certa semelhança com o que seria a revelação de um processo de criação e ensaio. Aquele trabalho – geralmente ocultado após a obtenção da obra final  –  de se tentar compreender cada intenção, cada movimento, de encontrar a melhor tradução. Mas não é bem isso o que está em cena.  Não é só isso.

O intérprete compartilha episódios biográficos, como a morte do próprio pai. Chega a evocar situações fictícias em que as resoluções são adiadas ou levadas a cabo. Um homem que decide se matar e esmorece. Uma mulher que vai ao cemitério encontrar o túmulo da mãe que nunca chegou a conhecer. Entre essas pontas, está o seu estupor e perplexidade diante de Hamlet. Todos os personagens que o cercam serão apenas evocados – alguns, como é o caso de Ofélia, não merecem mais do que uma breve menção. Cenas, atos inteiros são negligenciados. Em contraponto, somos convidados a nos deter sobre determinadas passagens. As filigranas que poderiam vir a desvelar o tormento – e a grandeza – desse herói titubeante.

Diante da profusão de traduções disponíveis hoje, a exposição de mais uma não deveria fazer diferença. Nesse caso, faz. O ator, que também assina a dramaturgia, sublinha com a sua leitura alguns pontos capazes de transformar o espectador em seu cúmplice nessa busca.  O famoso solilóquio do “ser ou não ser” merece grifo em algumas palavras e sinais de pontuação. A indecisão entre calar as dores ou pegar em armas é examinada ponto a ponto, frase a frase.

Hamlet é magnânimo porque não sabe, porque, diante de cada situação, duvida. Seu desejo se dissolve. Suas certezas são frágeis. Os heróis, os líderes da história ocidental, construíram suas trajetórias a partir de crenças inabaláveis, persistindo na fé mesmo quando tudo e todos se impunham como obstáculos.  Hamlet é o oposto do sujeito de ação, do político, do guerreiro. É inconstante, é o poeta a perder-se em meio às inutilidades e às miudezas do mundo. Não é o grande homem, é o pequeno homem.

O horror da morte o paralisa, assim como a nós. Somos todos pequenos.  Preferimos suportar as misérias conhecidas ao mal desconhecido. E isso também já havia sido dito – e reafirmado, sublinhado – em tantas e tantas montagens que já subiram aos palcos do mundo. Mas é sempre bom ouvir de novo. Sempre bom que alguém tente dizer novamente. E falhe novamente. E falhe melhor.


Maria Eugênia de Menezes é jornalista e crítica teatral, atuou como repórter e crítica de teatro do Caderno 2, do jornal O Estado de S.Paulo, com experiência na cobertura de festivais no Brasil e no exterior. Também escreveu na Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas como o Circuito Cultural Paulista e membro do júri de prêmios como Prêmio Bravo! de Cultura, APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e Prêmio Governador do Estado de S.Paulo.

*Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.