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PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] Excessos de um espetáculo ingênuo

Soluções previsíveis marcam montagem de texto que se afirma como um novelão

Por Daniel Schenker

cruzar-critica

A inspiração para Cruzar la Calle veio da realidade. O dramaturgo Daniel Amaru Silva testemunhou o atropelamento de um cachorro nas ruas de Lima. Além de entrelaçar as jornadas dos personagens a partir desse fato, o autor conferiu importância à cidade. Diferentemente do cinema, no teatro o público não vê a paisagem descrita (a menos que a montagem conte com projeção de imagens – o que não é o caso e não deixa de ser um procedimento cinematográfico). Mas a ausência de imagens não impede que o espectador perceba a relevância de uma determinada geografia e pode servir como um estímulo à imaginação.

A primeira informação sobre a cidade contida nessa peça sinaliza uma rejeição: a mãe de Hector, o rapaz que assiste ao atropelamento, foi embora há muitos anos. Ele nem tem registros da presença dela, que partiu em busca de um lugar de pertencimento. Na cidade, Amaru valoriza os deslocamentos dos personagens – até o ponto de ônibus e de suas próprias casas em direção a outras moradias em travessias que cortam a cidade. Boa parte dos personagens de Cruzar la Calle mora na periferia, que não parece se restringir a uma área específica. Apesar da extensão, a periferia é abafada pelo centro mais abastado para onde costumam convergir as atenções.

Os espaços são delimitados por biombos que trazem, cada um, uma cadeira acoplada em diferente posição, o que sugere a valorização de ângulos distintos de uma mesma história, de acordo com a perspectiva de cada personagem. Os atores manipulam esses biombos, mas, durante a maior parte do tempo, o recurso não se revela eficiente na transmissão das especificidades dos espaços.

De qualquer modo, a questão espacial permanece como a característica menos atada ao lugar-comum em Cruzar la Calle, que, tanto no âmbito da dramaturgia quanto no da encenação, segue uma série de convenções. Apesar de ter vencido o Concurso Nacional Nova Dramaturgia Peruana 2014, o texto foi construído como um novelão exemplar. Amaru investe numa trama passional, movida por personagens que, apesar de ocasionalmente sinalizarem transições ou ambiguidades, permanecem previsíveis.

Hector é um rapaz obstinado que sai à procura de Tomás, o atropelador do cachorro, e, à medida que se aproxima dele, deixa de odiá-lo. Machista e ciumento, Tomás tem dificuldade de conduzir sua vida de maneira minimamente equilibrada e expressa afeto de maneira desajeitada diante da esposa, Graciela, e da filha, Elena. Generosa e abnegada, Graciela procura compensar o feito do marido ao se aproximar de Alejandro, o dono do cachorro, mergulhado na depressão após a perda do animal de estimação. Elena é uma adolescente revoltada, que não se adapta ao convívio com o pai. E Alejandro, inicialmente arisco, renasce no contato com Graciela. Amaru procura imprimir agilidade no desenvolvimento de uma trama passional que adquire tintas carregadas no desfecho, o que realça ainda mais as suas fragilidades.

No que se refere à montagem, a sobrecarga de funções de Carlos Tolentino – assina a direção, cenografia, iluminação, trilha sonora e sonoplastia – possivelmente impediu uma percepção mais rigorosa do conjunto. A luz oscila entre uma estética kitsch e uma sobriedade que delimita, de maneira esquemática, os momentos em que os atores falam diretamente ao público. A música é empregada como um acompanhamento constante, excessivo, que visa a tão-somente sublinhar os climas emocionais, enfraquecendo a cena – em especial, nos instantes marcados pela utilização da conhecida Hallelujah.

Dentro de uma linha convecional de atuação e sem contar com material dotado de complexidade, os atores (Stephanie Enríquez, Elsa Olivero, Alfonso Dibos, Rolando Reaño, Alaín Salinas) procuram imprimir credibilidade aos personagens e conseguem administrar a intensidade emocional valorizada no texto e na encenação. Mas o engajamento do elenco não é suficiente para minimizar os problemas do espetáculo. Se ao longo do primeiro ato é possível considerar a ingenuidade dos procedimentos como uma escolha, no segundo o emprego de soluções pouco teatrais se torna evidente.


Daniel Schenker é bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e da revista Preview. Escreve para os sites Teatrojornal (teatrojornal.com.br)Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. É membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio, Questão de Crítica e Reverência.

*Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.