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PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] Entre o apagamento e a evidenciação do teatro

Projeto busca imprimir atmosfera real de tribunal em julgamento ficcional

por Daniel Schenker

© Magali Girardin.

© Magali Girardin.

Idealizado por Roger Bernat e Yan Duyvendak, o projeto de Please, Continue, Hamlet mescla realidade e ficção ao colocar o público diante do julgamento do assassinato de Polônio, pai de Ofélia, por Hamlet – personagens da peça de William Shakespeare, os dois últimos (e Gertrudes) interpretados por atores – num tribunal conduzido por juiz e advogados verdadeiros. Além destes, um médico legista e um psiquiatra forense são interrogados para esclarecer as circunstâncias relacionadas ao assassinato. As imagens dos depoentes, bem como as evidências da morte, ganham projeção numa tela. Alguns espectadores recebem um papel: a partir de sorteio do juiz, devem compor o júri encarregado de absolver ou condenar Hamlet.

Os atores são assumidos como tais por meio de camisetas que identificam os personagens de cada um. Não há, nesse sentido, a intenção de esconder que se trata de teatro. Por outro lado, os atores não parecem interpretar, como se houvesse um desejo de apagar os sinais de representação. Matheus Macena, Mariana Nunes e Iléa Ferraz – que, nas apresentações no Mirada, surgiram, respectivamente, como Hamlet, Ofélia e Gertrudes – demonstram sintonia com essa proposta ao reagirem com espontaneidade ao instante imediato. Já os magistrados se comportam como se estivessem em atividade no cotidiano e não diante de um julgamento ficcional. Mas, em que pese o costume de lidar com plateias (de acordo com o lugar-comum de que o tribunal é uma encenação), eles são colocados aqui em situação inédita. Possivelmente por não contarem com os instrumentos do ator, os magistrados, na apresentação ambientada na Sala Princesa Isabel, se mostraram, ainda que em graus variáveis, pouco à vontade. A cada diferente cidade em que o trabalho desembarca, a equipe – tanto atores quanto não-atores – muda. O resultado oscila bastante de acordo com a atuação de profissionais e não profissionais nas diversas localidades.

Bernat e Duyvendak propõem um jogo a partir de um recorte da obra de Shakespeare ao selecionarem um momento específico e pinçarem poucos personagens, mesmo que centrais, do texto original. Apesar da austeridade própria do ambiente do tribunal, as falas – em especial, as dos atores – são ditas de modo coloquial. Hamlet, Ofélia e Gertrudes surgem como figuras humildes, distantes do ambiente familiar de poder determinado por Shakespeare, e essa diferenciação aparece estampada na presença dos atores (ainda que, em dado momento, o Hamlet de Macena faça referência deslocada ao poder da família). Essas características apontam para uma dessacralização da célebre peça. No entanto, a operação dramatúrgica não se dá sobre as palavras de Shakespeare, e sim tomando como base uma situação específica contida no texto. Os diretores não investem numa apropriacão verticalizada da peça. Não estimulam novas leituras sobre os personagens.

Mesmo que a ideia (reproduzir uma atmosfera real de tribunal num julgamento ficcional) não se revele propriamente consistente, o projeto de Please Continue, Hamlet evoca uma obra instigante: O Interrogatório, de Peter Weiss, peça concebida a partir de um trabalho de corte e colagem dos depoimentos de acusados e vítimas do holocausto e encenada no Brasil por Celso Nunes (ns década de 1970), Luiz Fernando Lobo (na de 1990) e Eduardo Wotzik (na de 2000). Particularmente nessa última montagem, Wotzik reproduziu a ambientação de um tribunal e criou uma dinâmica em que os espectadores podiam entrar e sair livremente da sala, até porque a encenação do julgamento recomeçava depois de encerrado o texto caudaloso, a cada seis horas, até completar 24 horas. Mas, enquanto Wotzik lidou com um espaço teatral, mesmo despindo-o de suas convenções, Bernat e Duyvendak aproveitaram, em Santos, um local de tradição política.

Vale dizer que a sessão de domingo de Please, Continue, Hamlet contou na plateia com a oportuna presença do ator Pascoal da Conceição, que interpretou Polônio numa das primeiras montagens da volta do Teatro Oficina (rebatizado de Uzyna Uzona), na metade inicial dos anos 1990, intitulada Ham-let. Sorteado pela juíza, o ator acabou dispensado da tarefa de julgar Hamlet ao revelar seu “comprometimento” com a história.
*Sobre o autor: Daniel Schenker é bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e da revista Preview. Escreve para os sites Teatrojornal e Críticos e para o seu blog homônimo. É membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio, Questão de Crítica e Reverência.

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