PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] Crítico da contemporaneidade
Em encenação provocativa, Rodrigo García marca oposição ao apelo do consumo, à cultura de verniz e ao exibicionismo imperantes nos dias de hoje
por Daniel Schenker
Encenação assinada por Rodrigo García, 4 fornece ao público canais heterogêneos de enunciação – o texto dito em cena, as ações realizadas pelos atores, as falas em off, as projeções – com o intuito de estimular a autoria de cada espectador, incumbido de realizar a própria montagem. No entanto, a busca por um espectador autônomo é frisada ao longo da apresentação, como uma espécie de mensagem, evidenciando, desse modo, uma certa condução do olhar e uma relativa diminuição das possibilidades de apropriação da cena.
Há um momento que sintetiza o discurso de García: aquele em que a imagem de uma planta é projetada juntamente com inscrições que realçam o turbilhão de sons e imagens que assola o mundo contemporâneo. Os videoclipes resumem essa tendência ao não deixarem espaço para o espectador construir um ponto de vista, completar o que vê com a sua imaginação, para a possibilidade do silêncio. Nesse sentido, García parece se opor a uma cena marcada por estímulos ruidosos e pouco propositivos que remete a uma embalagem de teatro contemporâneo norteada pela tentativa de captação e, ao mesmo tempo, pelo deslumbramento diante dos excessos da atualidade.
Não por acaso, 4 conta com uma longa passagem (possivelmente, a melhor da encenação) destituída de elementos dispersivos (a não ser o figurino, propositadamente contrastante em relação à natureza econômica do momento), na qual um ator traz à tona uma infância atravessada pelo contato forçado – mas afetuoso – com três adultos, de aparência bem mais idosa que a faixa etária, dentro de uma relojoaria. García não sobrepõe qualquer provocação visual à fala do ator porque o texto chega em cena preenchido por imagens.
4 sugere que aqueles que não desenvolvem um olhar específico em relação ao mundo vivem numa espécie de estado vegetativo, na medida em que obedecem passivamente ao marketing sedutor dos dias de hoje, guiados pela lógica do consumo, a exemplo das presenças de duas meninas, que surgem excessivamente maquiadas, com penteados e roupas extravagantes, espalhafatosos. O próprio espectador é provocativamente convidado a exercer o exibicionismo da época em que vive ao ser chamado a subir ao palco e dançar diante de toda a plateia, além de permanecer em cena (apenas uma pessoa) para realizar uma entrevista com uma atriz do elenco, que, pela posição privilegiada, tende a conduzir a conversa – e na direção do constrangimento ao lançar questões sexuais.
Talvez o espectador não se dê conta da carga crítica contida em 4 e não só assista como participe de forma alienada, sem se deixar tocar pela tristeza de um espetáculo em que galos surgem em cena portando tênis, com dificuldade de locomoção, em que os atores permanecem atados pela discórdia após o rompimento de uma teia de afeto, em que a sexualidade desponta por meio de imagens traumáticas – como na evocação da mencionada infância e na imagem final das larvas engolidas por plantas carnívoras, instante que remete a Golgota Picnic, outro trabalho de García – ou insatisfatórias – a exemplo da cena em que os atores, ensaboados, ensaiam uma relação sexual que não chega a acontecer.
Caminhando na contramão da inconsistência da cultura de verniz – simbolizada pelo mencionado costume de se debruçar de maneira apressada, meteórica até, sobre obras consagradas -, García propõe operações instigantes – a julgar pela interferência sobre o quadro A Origem do Mundo, de Gustave Courbet. Contudo, mais do que exibir referências, apresenta um espetáculo que expõe corpos desamparados revelados em luz fria, dura, e potencializados por sonoridade rascante. Mesmo que a transparência do discurso reduza, em alguma medida, a atividade do espectador-autor reivindicado pelo diretor, 4 afirma a força criativa do teatro de García.
*Daniel Schenker é bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e da revista Preview. Escreve para os sites Teatrojornal (teatrojornal.com.br) e Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. É membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio, Questão de Crítica e Reverência.
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