Menu

PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] Sobre simulacros e tentativas de proporcionar experiência

Fugit, do grupo espanhol Kamchàtka, leva os espectadores a vivenciarem situações cotidianas de refugiados

Por Pollyanna Diniz, do blog Satisfeita, Yolanda?

28432645573_6c4247c954_c

Em Fugit, o grupo espanhol Kamchàtka propõe ao espectador a experiência, que se desdobra e pode perpassar diversos níveis. Apresentado nas ruas do centro histórico de Santos no Mirada, o espetáculo traça um percurso físico, sensorial, afetivo, simbólico. Ao chegarmos ao ponto de encontro marcado, no Centro de Pesquisa das Narrativas Visuais do Valongo, os atores – todos carregando malas antigas – nos levam a um rápido passeio de bonde. Desembarcamos em poucos minutos numa construção em ruínas. Lá dentro, devagar, atravessamos um caminho pontuado por tábuas, até uma espécie de instalação cênica. Em cima de um monte de areia, mapas são espalhados; noutro canto, no alto, uma mulher separa lençóis e joga para os companheiros e até para alguns espectadores. Mesmo que o trajeto pela construção até essa cenografia seja praticamente solitário, todos ocupamos o mesmo espaço.

Em determinado momento, os atores vão escolhendo e separando os espectadores em grupos e levando para lugares distintos. Começa então, de fato, a experiência de Fugit. Último espetáculo de uma trilogia – antes vieram Kamchàtka (2007) e Habitaculum (2010) – a peça tenta nos aproximar da experiência dos refugiados. Como sabemos, a migração forçada, uma questão também tratada durante o festival por Birdie, do espanhol Agrupación Señor Serrano, se tornou uma tragédia humanitária de proporções mundiais.

Na proposta cênica de Fugit, a primeira dimensão é a do deslocamento, que começa desde o ponto de encontro, mas só vai se acentuar ao longo do espetáculo. A segunda, a da barreira da língua. Como para acentuar que todos somos estrangeiros, o espetáculo não é falado, nenhuma palavra será dita pelos atores. E a terceira talvez seja a da separação. O filho adolescente não estará com a mãe; casais, namorados não ficarão juntos na peça; os amigos do colégio distantes.

Minutos depois, os atores nos mostram passaportes e celulares; e nos impelem a colocar dentro de um saco de lixo celulares e carteiras de identificação. As pessoas se entreolham, como se questionassem entre si a necessidade de entregar mesmo os objetos, se confiam naqueles homens. Sem os nossos documentos, é como se estivéssemos mais frágeis, tendo nossas identidades questionadas. Não podemos mais provar quem somos, deixamos de ser alguém com nome e número, protegidos pela suposta segurança das regras das leis. Sem os celulares, vemos tolhida a nossa capacidade de comunicação, de estar em contato com o outro, para além daqueles que nos rodeiam fisicamente. Mas se o refugiado não tem escolha, geralmente deixando tudo para trás, fugindo de situações que extrapolam os limites da segurança da vida, aos espectadores também não é aberta a possibilidade da recusa. Começam ali os exercícios do desapego e do desamparo e, principalmente esse último, vai se prolongar por toda experiência.

A partir de então, andamos de ônibus escondidos por lençóis, atravessamos ruas encostados nas paredes, entramos sorrateiramente em lugares estranhos, nos escondemos por trás de carros no estacionamento, ficamos por alguns minutos de um banheiro minúsculo. Um dos momentos mais fortes é quando o ator tira da mala, com todo cuidado, um pedaço de pão. E as pessoas são levadas a dividir o alimento. No meu grupo, um dos atores também compartilhou a água mineral de um espectador. A privação, a fome, recorrentemente, o desamparo. Há também uma cena simples e tocante, sobre a possível falência dos projetos de fuga e imigração. Quantos ali escapariam com vida, se tudo fosse verdade e não uma encenação? E, mesmo que dê certo, que as famílias consigam estar juntas, como trabalhar a questão da identidade, do pertencimento? A angústia do exílio, do ser estrangeiro, do não-lugar.

O vídeo de um menino de cinco anos, coberto de pó e ensanguentado, assustado, mas resignado, vítima de um ataque aéreo na cidade síria de Aleppo, ou a foto do garoto morto na praia da Turquia, depois que a embarcação em que estava ter naufragado, conseguem nos mobilizar. Com forte apelo, essas imagens viralizam pelas redes sociais muito rapidamente, conseguindo nos dar indícios e nos transportar à realidade de crueldade diária enfrentada pelos refugiados. Fugit opera nessa mesma lógica: tentar nos sensibilizar através da experiência.

Há questões, no entanto, que se mostram nevrálgicas. A principal delas é a necessidade de que o espectador esteja realmente disposto a se envolver, a jogar, a correr pelas ruas da sua cidade como se fosse um fugitivo, a se permitir vivenciar as situações. Nesse sentido, talvez alguns fatores possam amplificar a possibilidade da experiência ao espectador. A sessão realizada no período da noite seria mais impactante do que a realizada durante a noite? Ou um dos trajetos mais disparador do que outros? Nesse cenário, é importante ressaltar a qualidade dos atores. Os seus corpos permanecem, desde o início da montagem, em estado constante de jogo e de capacidade de improviso.

Tanto a potência quanto a fragilidade de Fugit estão relacionadas à mesma raiz: a simulação da realidade. Ao mesmo tempo em que a proposta do grupo pode nos colocar na situação de crise, de assumir o lugar do outro, de questionar o mundo em que vivemos, tudo será sempre um jogo. E, nesse sentido, se o jogo por algum motivo não se estabelecer com o espectador, a experiência fica diminuída. A impossibilidade – as dimensões do real superam quaisquer tentativas – de vivenciar de fato a realidade de um refugiado é uma questão instransponível. O que se pode fazer, e o grupo Kamchàtka tenta com inteligência, é tirar o máximo de proveito da experiência que o simulacro pode nos oferecer.

__________________

Pollyanna Diniz é jornalista, crítica e pesquisadora de teatro. Mestranda em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), há cinco anos edita e produz conteúdo para o blog Satisfeita, Yolanda? (www.satisfeitayolanda), do qual é uma das idealizadoras. Participou de coberturas de festivais e mostras como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (2014, 2015 e 2016), a Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo (2015) e a Bienal Internacional de Teatro da USP (2015). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.