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PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] Resistência em tempos de guerra
Andante propõe um trajeto cênico baseado principalmente na sugestão de imagens ao espectador
Por Pollyanna Diniz, do Satisfeita, Yolanda?
O espetáculo Andante, da Markeliñe, companhia fundada em 1987 em Bilbao, provoca o espectador principalmente a partir da construção de imagens. Trabalhando com teatro de rua e objetos, os criadores propõem instalações cênicas, instigando o público a construir junto ao grupo a dramaturgia da peça, a partir das pistas que vão se desprendendo da cenografia. Como o espetáculo não é falado, torna-se ainda mais evidente a estruturação da montagem, de modo a estabelecer trocas semânticas com quem acompanha a trajetória do espetáculo.
Em Santos, o ponto de partida de Andante foi a Fonte do Sapo, na orla da cidade. Ao se depararem com os objetos – pares de sapato velhos, malas, telhas quebradas, um cenário de guerra (e assim começam as tentativas de estabelecer significados) -, e a identificação do festival, as pessoas logo se colocaram em roda aguardando o início da apresentação. Aquele, no entanto, não seria o único local da performance do Markeliñe, já que uma das características do trabalho é a tentativa de estabelecer uma espécie de cortejo, uma migração: atores e espectadores caminhando lado a lado até a próxima parada, onde uma nova cena se instaura e logo depois se dissipa.
Além da cenografia e da proposição de um trajeto, Andante encontra na música executada ao vivo por um dos performers uma das possibilidades de ampliar a potência da sua dramaturgia e da própria encenação. Se há apenas sugestões do que seriam essas cenas, das histórias trazidas a partir delas e, de fato, o espectador será o responsável por ir juntando as peças como um quebra-cabeças, mas sem encaixes únicos ou perfeitamente ajustados, a música é um elemento disparador importante. Principalmente no que diz respeito ao estímulo da sensibilidade, levando os espectadores a compartilharem juntos de um mesmo diapasão proporcionado pelos acordes, que podem ser tristes ou, por exemplo, mudar estados, instaurando diferentes momentos de cena.
Na primeira estação, o principal elemento cenográfico da montagem, o sapato, pode reportar narrativas diversas. No material do espetáculo, lemos que a maré talvez tenha devolvido aqueles calçados velhos, que já pertenceram a pessoas cujas histórias precisariam ser contadas. Os três personagens (um homem e duas mulheres) são interpretados por três atores usando máscaras, que chegam à primeira parada puxando uma carroça de madeira. Na cena, as máscaras dos atores deixam a mensagem ora de tristeza, ora de desamparo, mas também e talvez principalmente de inocência. Nesse primeiro ponto de encontro, o mais velho do grupo recolhe os sapatos, embora uma explosão sempre possa mudar o rumo das coisas. E então seguimos o trajeto.
Na segunda estação, uma delimitação de tempo e espaço circunscreve o espetáculo numa realidade mais palpável. Numa placa, lê-se: Santiago, Chile, 1973. Esse foi o ano do golpe de estado no Chile, que derrubou Salvador Allende e instaurou o regime ditatorial de Pinochet. Nesse cenário, um casamento é celebrado, utilizando-se dois pares de sapatos. De que forma a nossa vida cotidiana se vê afetada pela violência, pela guerra, pelos regimes de exceção que se estabelecem de tempos em tempos?
Na terceira estação, há uma reprodução de áudios sugerindo os discursos de ditadores, de generais; os sapatos estão carregam muita areia e a imagem da morte se faz mais presente. A morte de Franco é anunciada e, mesmo diante do quadro de devastação, uma flor pode permanecer viva, assim como a magia das mágicas bobas apresentadas pelos personagens. Na quarta parada, as palmas surgem da manipulação dos sapatos pelos espectadores.
Em Andante, a ocupação do espaço público resgata memórias e estabelece a vivência compartilhada de uma realidade simbólica, dialogando sobre tempos passados, mas também sobre o presente. Os objetos de cena trazem cargas que produzem novos campos, efeitos, ecos. Sejam eles de disputa de poder, de guerra, mas ainda e porque não, de construção de afetos em meio ao caos. Mesmo que a dramaturgia exiba em seu cerne a fragilidade de ser construída somente a partir de sugestões, principalmente de imagens, essa proposta do grupo talvez deva ser lida como resistência. De acreditar na sensibilidade e na organização de um pensamento que pode até não ser formal ou enquadrado em lógicas, mas respeita as subjetividades e possibilidades do espectador.
* Pollyanna Diniz é jornalista, crítica e pesquisadora de teatro. Mestranda em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), há cinco anos edita e produz conteúdo para o blog Satisfeita, Yolanda?, do qual é uma das idealizadoras. Participou de coberturas de festivais e mostras como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (2014, 2015 e 2016), a Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo (2015) e a Bienal Internacional de Teatro da USP (2015). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.