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PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] Realidade com tintas ficcionais

Johan Velandia traz à tona a trajetória de Daniel Camargo Barbosa por meio de procedimentos documentais relativizados, porém, pelo registro interpretativo do elenco e pela trilha sonora

Por Daniel Schenker

Autor do texto, diretor da montagem e integrante do elenco, Johan Velandia contrasta, em Camargo, procedimentos documentais com a quebra desse registro. Na encenação da companhia colombiana La Congregación Teatro, Velandia traz à tona, dentro de uma estrutura ficcional, depoimentos de Daniel Camargo Barbosa (1930-1994), responsável pelo estupro e morte de 157 meninas virgens na Colômbia, no Brasil e, principalmente, no Equador, e o desdobramento do caso por meio das investigações.

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Nas paredes do cenário, composto basicamente por uma grande mesa, fotos de Camargo e, ao que parece, de algumas de suas vítimas. A confrontação com o real é relativizada pelo desenho propositadamente exagerado dos personagens dentro da dramaturgia, característica realçada nos desempenhos expandidos, acentuados, do elenco – com um pouco mais de frescor nos trabalhos das atrizes do que dos atores. A trilha sonora, nas cenas marcadas pela “fala” de Camargo, acentua a tensão de uma trama macabra repleta de reviravoltas, centrada em personagem-título retirado da realidade, portador de distúrbio originado na infância. O diretor provoca uma espécie de fricção entre a filiação a um determinado gênero (suspense), notadamente ficcional, e a concretude do documental, vertente percebida, no senso comum, como transmissora imparcial da verdade. Uma impressão, porém, que não condiz com a prática porque a captação do real está inevitavelmente atravessada pelas subjetividades do artista e do entrevistado (não por acaso, considerado como personagem).

Em Camargo, o concreto pode não passar de delírio de personagens que vivem à margem da realidade. Ao entrarem no teatro, os espectadores recebem um papel: o de convidados de uma reunião familiar. São dispostos ao redor de uma grande mesa, onde ocasionalmente ficam os atores, enquanto que o restante da plateia se divide em duas arquibancadas localizadas nas laterais do espaço. Ao longo da apresentação, os atores destinam pequenos comentários à plateia, não só à parte que está dentro da cena como a que se encontra desvinculada da ação, nas arquibancadas. A presença dos espectadores sentados à mesa é concreta, mas relativizada a partir da sugestão de que não passam de projeções imaginárias de um fanático. A religiosidade desmedida de Camargo rende uma cena alucinatória. As referências bíblicas também são sublinhadas por meio do pão e do líquido de coloração que evoca a do vinho servidos aos espectadores.

Velandia concebe uma estrutura propositadamente repetitiva (as cenas marcadas por insistentes chamados pela entrada do protagonista, os atores servindo comida e bebida). Embaralha os acontecimentos ao invés de dispô-los em ordem cronológica convencional. Investe no oculto, em passagens que o espectador escuta, mas não vê, seja porque ocorrem em momentos de blackout, seja porque acontecem debaixo da mesa. São soluções empregadas, em especial, nas cenas de assassinatos, uma vez que, diferentemente do cinema, o teatro é uma arte em que não há como reconstituir com veracidade circunstâncias como essas diante do público.

 

Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e da revista Preview. Escreve para os sites Teatrojornal (teatrojornal.com.br) e Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. É membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio, Questão de Crítica e Reverência.

*Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.