PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] Possíveis radicalidades bolivianas
Coletivo Kiknteatr apresenta projeto ambicioso com três abordagens políticas do país, em que predominam o humor, a investigação da cena contemporânea e o flerte com o real
Por Ivana Moura, Do blog Satisfeita, Yolanda?
A Trilogia Boliviana avança por um território convulsionado, em fluxos de perdas – de extensão, de riquezas e do acesso ao oceano. Projeta no palco as bolivianidades do caráter plurinacional. E os embates criativos que delatam de forma bem-humorada os preconceitos da própria América Latina sobre a arte desenvolvida no país. O coletivo Kiknteatr, fundado em 1997, trabalha com linguagens distintas para atacar aspectos diferentes do fenômeno teatral e as particularidades de sua cultura andina inserida nas complexidades da arte borrada em suas fronteiras. O grupo trouxe ao MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos três peças que podem ser encaradas individualmente ou relacionadas em um mosaico artístico da trupe.
Com texto e direção de Diego Aramburo a Trilogia Boliviana é composta por Ukhupacha (Mortales), “um stand up bizarro”; Kaipi (Morales), uma visão quase obscena do país, a partir de um grupo de teatro arriscando fazer um show pornô; e Hejarei (Immortals) baseada em histórias de resistência de mulheres da cultura guarani.
É um projeto ambicioso de um dos diretores mais importantes da Bolívia, que persegue a transgressão com a cumplicidade dos atores. A reflexão estética é evocada em cena que o encenador aponta para três níveis: o para baixo, escuro e denso; o terrestre; e o etéreo.
Ukhupacha (Mortales), é um espetáculo com um “anão de merda”, que rememora sua vida. Sentado em um canto do palco, e separado do público por uma divisória transparente, ele gira sua metralhadora verborrágica. Em uma hora disseca a trajetória da região, fala dos fracassos de uma geração perdida e das ruínas dele mesmo. Com uma força sarcástica na voz e nas entonações, ele forja um ambiente onde o riso é certo. Há uma nostalgia de um futuro que não chegou.
O ator Winner Zeballos mistura dados reais e ficcionais. Para quem não domina a história política e cultural do Bolívia fica difícil saber onde termina uma e começa outra. Mas é teatro. Ukhupacha (terra interior em quíchua) é dionisíaco.
Estão lá no discurso as revoluções e guerras, num tratamento irreverente sobre a história. Como a do Chaco de 1930, quando a Bolívia perdeu uma zona rica em petróleo.
Citações a novelas brasileiras, músicas de Chico Buarque e Roberto Carlos e uma forte lembrança do apresentador Silvio Santos reforçam essa versão sobre a nação longe das narrativas oficiais.
Nesse monólogo frenético, Winner é atravessado por um delírio entre o zombeteiro e o suplício. Ele é afetado por parte significativa da trajetória boliviana e que sinaliza para a segunda parte da trilogia, Morales.
O trabalho interpretativo concentra-se na voz – volume, modulações, intenções – e nas expressões faciais, num desempenho convincente. Esse anão é um personagem ácido, entre frustrado e orgulhoso, entre político e o artista, obcecado por televisão e pela indústria cultural das décadas de 1960, 70 e 80.
Kaipi (Morales) é mais arriscada e crua em seus questionamentos sobre a arte contemporânea, sua crítica aos procedimentos adotados, com citações a alguns grupos de forma textual ou com elementos recorrentes dessas companhias. O espectador vira um voyeur de um filme pornográfico exibido em uma pequena tela ao fundo, enquanto o grupo se debate para defender ideias políticas e artísticas para colocar na peça.
Num entra e sai de personagens, eles fazem paródia com a música pop e com o teatro experimental. E inserem cenas como pastiche de companhias que encantam o mundo ocidental, com suas cabeças de cachorros, travestimentos, nudez, artistas que se jogam no chão, banda que permeia a montagem, discussões infindáveis sobre verdades, simulacros e limites da exposição da intimidade dos artistas. No palco Jorge Alaniz, Winner Zeballos, Camila Rocha, Abigail Villafan, Diego Aramburo.
Morales foca na ideia do presente e do terreno, do contexto em construção da Bolívia de Evo Morales e da paisagem vulnerável e repleta de contradições e conflitos mentais dos bolivianos. Como uma obra em continuidade de processo expõe mais debilidades e questões cênicas a serem resolvidas.
DEIXAR IR
Com uma performance física e emocionalmente mais exigente, Hejarei (que em guarani significa “gota”) leva as lutas vitais do feminino para a cena, a partir de uma outra lógica de resistência, a de “deixar ir”. Uma visão controversa e desafiadora enquanto temática e construção de sentido.
A terceira parte da trilogia representa o etéreo, o Janajpacha e assume mais riscos. Apresenta mulheres como corpos de resistência histórica. O elenco, formado por integrantes da companhia e convidadas brasileiras, está nu e cada uma com uma corda amarrada pelos cabelos. Elas desenvolvem movimentos de danças ritualísticas, de várias partes da Bolívia, e contribuições pessoais.
A luta individual é incorporada nos passos e na essência da dança. Do grupo, apenas Camila Rocha tem mais intimidade com as técnicas do balé. Em cena também Rocío Canelas, Abigail Villafan e outras figuras da trupe.
Inicia com uma referência textual projetada no palco: Massacre do Kuruyuki, em 1892, quando seis mil homens, mulheres e crianças guaranis insubordinados à escravidão foram covardemente assassinados à bala pelo governo constitucional.
Também fazem alusão aos suicídios coletivos do início do século 20, protagonizado por mulheres na Bolívia.
A dança performance utiliza poucos recursos para alcançar uma ampla escala.
Um som insistente e repetitivo faz as marcações. Algumas indicações das substâncias que serão utilizadas no palco dão um reforço nesse aspecto do teatro do real. A arte é investida desse real verdadeiro.
O cenário é mesmo dos outros dois espetáculos. Uma pequena caixa preta, com a divisória transparente, um clima mais escuro. O ambiente de prisão e confinamento é reforçado. E o desvio para o real. No jogo de acordos entre ficção e realidade a seringa que tira o sangue provoca a percepção desse tecido da experiência real da cena.
Nem todas conseguem cumprir o procedimento com a mesma habilidade. Quase metade do elenco desse espetáculo foi recrutada no Brasil e não faz parte do grupo boliviano. Mas isso cria também uma ranhura interessante da matéria real.
Nas articulações entre arte e vida, a recepção das escolhas do grupo não gera unanimidade. A tensão chega ao ápice quando Camila Rocha recebe uma substância nas pernas. Primeiro diminui até paralisar os movimentos das pernas. E depois ela cheira determinado líquido que a deixa desacordada. Ela sai carregada nos braços por suas companheiras. Para concentrar a imagem do suicídio das mulheres a atriz ocupa esse espaço complexo para a politização do real, enquanto lugar de resistência.
Ivana Moura é jornalista, crítica cultural, pesquisadora de teatro, atriz e dramaturga. Mestra em Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Desde 2011 edita e produz conteúdo para o blog Satisfeita, Yolanda? (www.satisfeitayolanda.com.br), do qual é uma das idealizadoras. Participou de coberturas de festivais e mostras como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp (2014, 2015 e 2016), a Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo (2015), Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015) e Bienal Internacional de Teatro da USP (2015). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.
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