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PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] Arte hipnótica de contar filmes

A junção entre teatro e cinema é explorada na montagem chilena La Contadora de Películas

Por Ivana Moura, do Blog Satisfeita, Yolanda?

lacontadora

Como conciliar artes diametralmente opostas como teatro e cinema na cena ao vivo de um espetáculo? A realização de La Contadora de Películas exigiu da companhia Teatrocinema uma investigação que ultrapassa questões técnicas do arcabouço do filme em perfeita sincronia com a atuação do elenco. É surpreendente o resultado da encenação do grupo chileno, que une a linguagem fragmentada do cinema (com seus recortes de som e imagem, e a montagem) e o aqui agora da cena teatral.

Essa proposta diferente, de visual impactante, foi apresentada no MIRADA, Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, em São Paulo. Na peça, a protagonista María Margarita reconta sua vida de esplendor e decadência, mesclando a realidade atual com os filmes de ficção que viu durante a infância, no deserto em que morava com a família, no norte do Chile.

La Contadora de Películas dirige essa viagem no tempo e no espaço com a magia gravada do cinema e a potência visceral do tempo real do teatro. Com a sua arte multimídia, a peça aposta na capacidade de fazer figuras aparecerem e desaparecerem, de trocar cenários visuais, em dispositivos precisos para encantar os olhos, os ouvidos e outros sentidos.
Com apenas cinco atores no palco, os jogos teatrais, a fantasia e a imaginação são exploradas em sincronia perfeita com os artifícios do cinema. A técnica é bem-acabada e os atores executam com habilidade suas funções.
O enredo segue um caminho melodramático, com direito a dicção forçada, imitação e paródia das antigas dublagens, repetição borrada (com efeito de erro de filmagem) em cenas que provocam riso imediato. A artificialidade farsesca esvazia o pathos do teatro e sua efemeridade urgente, mas recorre ao instante eternizado do cinema.
A obra cênica é baseada no romance de Hernán Rivera Letelier, situada no meio do século passado. A protagonista conduz o público nesse passeio pela memória da família, incluindo as mudanças na vida cotidiana depois que o pai ficou paralítico, vítima de um acidente na mina. Preso a uma cadeira de rodas, ele é abandonado pela mulher, decidida a correr atrás de seus sonhos de vedete.
Na recomposição desses fios, a personagem central esbanja capacidade de criar imagens com palavras, abrindo horizontes para libertar criaturas atreladas à aridez do cotidiano e do deserto. A filha de um perfurador na extração de nitratos em Atacama é a escolhida pelo pai, entre os outros filhos, para interpretar os filmes que vê no cinema. Ao focar no drama desse clã, a companhia teatral também investe na história do Chile, dos seus lugares esquecidos.
A direção geral e música original são assinadas por Juan Carlos Zagal. A direção de arte é de Vittorio Meschi. Com performances de Laura Pizarro, Sofía Zagal, Daniel Gallo, Christian Aguilera e Fernando Oviedo. A companhia também tem no repertório, além de La contadora de películas, Sin sangre, El hombre que le daba de beber a las mariposas e História de amor.

Peripécias de menina
María Margarita recupera e reconstrói a memória, em tranças delicadas, carinhosas, mas também carrega a fortaleza nas cores desse passado. A montagem começa com a poeira do deserto e percorre um jogo visual labiríntico, com diferentes perspectivas e planos de quase 360º que enredam os personagens.
É uma produção de risco, que traça fusões, perseguindo uma linguagem própria, com sua pesquisa que combina atuação dos atores e o mundo virtual. O elenco se move entre duas telas transparentes e entra nas projeções de vários gêneros: de gangsteres, de ação, de ficção científica, romances, protagonizadas por Marilyn Monroe, Gary Cooper ou Charlton Heston e as fitas mexicanas com muitas canções.
Depois de muitas peripécias, a protagonista se vê sozinha no deserto esquecido; sua arte ficou para trás com a chegada de um novo entretenimento para o lugarejo: a TV. As pessoas partiram ou morreram e María Margarita continua a criar, sonhar, enxergar outras dimensões do seu velho povoado.


*Ivana Moura é jornalista, crítica cultural, pesquisadora de teatro, atriz e dramaturga. Mestra em Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Desde 2011 edita e produz conteúdo para o blog Satisfeita, Yolanda?, do qual é uma das idealizadoras. Participou de coberturas de festivais e mostras como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp (2014, 2015 e 2016), a Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo (2015), Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015) e Bienal Internacional de Teatro da USP (2015). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.