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PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] Armadilhas e caminhos dentro do labirinto

Maria Eugênia de Menezes – Site Teatrojornal – Leituras de Cena

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Existem palavras que não querem dizer. Não servem propriamente à construção de uma mensagem. Antes, assumem outro papel: assegurar que a comunicação está funcionando, mandar ao interlocutor um sinal de que ele é escutado e pode, portanto, seguir a falar. Vinicius Calderoni encontrou nessa função da linguagem o mote e o título para seu espetáculo: “Ãrrã”., da Cia. Empório de Teatro Sortido.  O termo, que serve simplesmente para assentir com quem se está a falar, vem dar conta de situações em que estamos distraídos. De corpo presente, mas fora do tempo. Comentando determinadas situações que se apresentam, mas pensando, muitas vezes, em outras.

Com “Ãrrã”, Calderoni conquistou o Prêmio Shell de melhor autor. Foi sua segunda indicação – ele já havia sido lembrado por sua estreia como dramaturgo, em “Não nem Nada”. Trata-se de um reconhecimento significativo, especialmente se considerada a brevidade de sua carreira e o tipo de dramaturgia que está construir: fluida, descontínua, sem enredo. O que a dupla de atores Luciana Paes e Thiago Amaral leva à cena são fiapos de narrativa. Cenas brevíssimas, como se tivéssemos acesso a instantes de vidas anônimas, como se flagrássemos pedaços de conversas (e pensamentos) em meio à multidão.

Em seus depoimentos, o autor costuma evocar as referências cinematográficas da obra. A maneira como se aproxima ou se distancia de determinado personagem, como se operasse uma câmera. Não importa, a priori, essa deferência aos mecanismos de filmagem. Chama atenção, contudo, a maneira como o criador logra concretizá-la: A partir de pequenos ardis, construídos dentro do texto. Como se pusesse em ação uma máquina que comandasse, aleatoriamente, as trocas de cena.

A descontinuidade é um dos pilares do teatro contemporâneo, pelo menos daquela parcela que virou as costas para o drama e investiga formas alternativas de narrativa. “Ãrrã” se dá por um arranjo em que a estrutura formal conta muito. Decerto, essa visão de constructos dramatúrgicos poderia constituir uma experiência enfadonha para quem assiste. Estranhamente, é ao expor as engrenagens, ao oferecer ao público a visão de como opera essa mecânica, que a peça mobiliza o espectador. E consegue fazê-lo, em grande medida, pela sua aura de brincadeira. Convida o público a participar de um jogo de armar, espécie de quebra-cabeça onde as peças não se encaixam.

Apenas uma passarela de madeira e alguns refletores compõem a cenografia. Não há outros móveis. Não haverá trocas de figurinos. E mesmo as projeções, tão em voga, são utilizadas com parcimônia, quase unicamente como legendas, sinalizando cada uma das três partes que compõem a montagem. A simplicidade de recursos abre espaço para que o encontro entre os dois intérpretes alcance o impacto devido. Egressos da Cia. Hiato, Luciana Paes e Thiago Amaral demonstram uma preciosa sintonia em cena. Sabem se engrandecer mutuamente, reforçam, com seus trabalhos de composição, a aparência lúdica das proposições do texto. Com eles, tudo soa fácil, ligeiro. Ainda que demande construção precisa.

É significativo que esses atores demonstrem em cena a fecundidade do seu encontro. Nessa peça de papéis múltiplos e histórias recortadas, algumas temáticas são atravessadas. Uma delas, a dificuldade de se estar, de fato, com o outro. O tempo que passamos acompanhados, mas presos em nossos próprios pensamentos. A solidão que se impõe em aglomerados de gente. Situações nas quais a comunhão não passa de aparência enganosa. Mesmo quando pai, mãe e filho vão juntos ao planetário. Quando duas amigas decidem assistir juntas a um concerto. Quando marido e mulher conversam dentro do carro. Estão todos sós. Encerrados em seus espantos, suas fragilidades imensas e imperfeições.

Menos contundente revela-se o terço final do espetáculo – tentativa de amarrar, por meio de um personagem – as pontas aparentemente soltas da obra. A necessidade de uma costura, que viesse a dar sentido ao que parecia fortuito, mina parte do engenho do texto. Aproximando-o, injustamente, das soluções maneiristas que vicejam em parcela da dramaturgia contemporânea.


Maria Eugênia de Menezes é jornalista e crítica teatral, atuou como repórter e crítica de teatro do Caderno 2, do jornal O Estado de S.Paulo, com experiência na cobertura de festivais no Brasil e no exterior. Também escreveu na Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas como o Circuito Cultural Paulista e membro do júri de prêmios como Prêmio Bravo! de Cultura, APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e Prêmio Governador do Estado de S.Paulo.

*Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.