PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] Conexões nebulosas
por Daniel Schenker
Antígona é pouco mais que uma inspiração para a encenação cubana Antigonón, um Contingente Épico, dirigida por Carlos Díaz, com dramaturgia de Rogelio Orizondo. Há menções à tragédia de Sófocles – não só à trama centrada na mulher que, desobedecendo a ordem do rei Creonte, se mostra determinada a enterrar o irmão, Polinice, considerado traidor de guerra, como à Trilogia Tebana, também formada por Édipo Rei e Édipo em Colono, a exemplo da menção ao momento em que Antígona guia o pai, Édipo, já cego, após furar os próprios olhos. Mas, ao se voltarem para a história e a realidade de Cuba (ou, numa perspectiva mais abrangente, da pátria), Orizondo e Díaz adquirem voo independente em relação ao texto original.
Díaz evita reiterações. Os elementos que integram esse espetáculo da companhia El Público (a movimentação dos atores, as projeções, os figurinos) não se confirmam mutuamente. Ao invés de fornecer chaves seguras de transmissão de conteúdos, mensagens, o diretor procura estimular a autonomia de cada espectador na construção da própria interpretação sobre a cena. A decisão de não facilitar a apreciação pode ser vista como um mérito, como uma bem-vinda postura de resistência (termo que norteia as ações de Antígona). Mas, por outro lado, Antigonón, um Contingente Épico desponta como um trabalho um tanto cifrado, pouco acessível até mesmo ao espectador munido de referências. É difícil estabelecer conexão com a montagem, apesar da instigante construção da cena.
Uma apreciável secura atravessa o espetáculo. Essa característica fica evidenciada desde o início, quando os atores, nus, realizam uma partitura de movimentos (concebida por Xenia Cruz e Sandra Ramy), sem acompanhamento de texto ou de música. Carregam uns aos outros até formarem o que parece ser uma montanha de cadáveres, da qual alguém se desvencilha. A cenografia (de Robertiko Ramos) é bastante simples, composta por biombos cobertos por jornais amassados, com símbolos estampados. Há relativamente pouca trilha sonora (de Bárbara Llánes) ao longo do espetáculo, o que sinaliza corajosa aridez, mesmo quando uma atmosfera carnavalizada começa a despontar por meio dos figurinos (de Celia Ledón e Robertiko Ramos). São peças extravagantes, que, muitas vezes, não ocultam a nudez, usadas de forma sugestivamente invertida, o que acentua a ambiguidade sexual destacada ao longo da apresentação.
O corpo tem importância central dentro da dramaturgia. Orizondo aborda um corpo-pátria, esvaziado, devorado. Como resistir ao ter o corpo invadido? A resposta parece estar na presença das atrizes, que assumem a palavra durante boa parte do tempo por meio de um registro vocal firme, contundente, combativo, como Antígonas que reviram as tripas do irmão e não hesitam em fazer o que consideram fundamental, inadiável, independentemente da lei imposta pela autoridade. O palco é tomado por figuras endurecidas, desiludidas. Na contemporaneidade, como no passado remoto, não há espaço para o romantismo ou para a ilusão. Essas associações eventuais, porém, não chegam a ganhar corpo nesse espetáculo instigante, mas excessivamente nebuloso.
*Daniel Schenker é Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e da revista Preview. Escreve para os sites Teatrojornal (teatrojornal.com.br) e Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. É membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio, Questão de Crítica e Reverência.
*Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.