PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] ARRISCAndo O IMPOSSÍVEL
Ou Da pirotecnia metalinguística à piromania conceitual
por Welington Andrade
Bahabadalgharaghatakamminarronnkonntonnerronn
tuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohoordenen
thurnuk!
James Joyce, Finnegans Wake.
Em O ano em que sonhamos perigosamente, o grupo Magiluth, coletivo teatral sediado em Recife, apropria-se de uma série de temas caros aos seus cinco integrantes, como as manifestações de rua que estão ocorrendo mundo afora desde 2013, os movimentos de ocupação dos espaços públicos que têm acontecido no Brasil nos últimos tempos e a obra de determinados pensadores da contemporaneidade, dentre eles o sociólogo esloveno Slavoj Zizek, de cujo livro lançado no mercado editorial brasileiro no ano de 2012 eles retiraram o nome de seu oitavo espetáculo.
Entretanto, tal apropriação se dá pela via do exercício de uma experimentação de linguagem teatral – calcada tanto na intensidade das presenças dos atuadores em cena, como de gestos e de ações destituídos de qualquer teor de narratividade – desdobrada em uma aura de metateatralidade com a qual é bastante difícil dialogar. Assim, servindo-nos de um outro título de Zizek (já que a presença do texto-motriz no espetáculo funciona para o espectador como uma espécie de Sr. Godot), propomos aqui um solilóquio em forma de crítica. Ou um texto crítico em forma de puro solipsismo.
Arriscando o impossível (também sabemos batizar intertextualmente nossas criações) é o nome que ganhou a edição brasileira do livro que reúne a série de conversas que o professor titular de sociologia no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, na Eslovênia, entabulou em 2004 com Glyn Daly, professor assistente de política na Faculdade de Artes e Ciências Sociais do University College, em Northampton, no Reino Unido. A obra tem início com a rememoração da anedota de Lacan a respeito de um comentário de Freud a Jung. Ao chegarem ao porto de Nova York, nos Estados Unidos, para onde viajaram a convite da Universidade Clark, Freud aponta para a estátua da liberdade e declara a Jung: “Eles não sabem que lhes estamos trazendo a peste”. Pois bem, a mais recente criação do grupo Magiluth parece operar no registro de um vírus que eles inoculam no próprio acontecimento teatral de modo a levar o espectador a destruir a comodidade do que se poderia chamar de tecido do teatro narrativo e espetacular. Resta saber se o procedimento resulta na deflagração de uma peste violenta (de compromisso estético e político muito mais amplo) ou somente na irrupção de um vírus de computador, incômodo somente até que uma boa varredura o encontre e aniquile.
Se O ano em que sonhamos perigosamente procede à “apropriação subjetiva de todas essas forças que funcionam como combustível para o registro de atuação”, vale analisar de que tipo de subjetivação se está falando. Se é daquela que leva à loucura constitutiva do ser (conforme postula Zizek, cotejando Kierkegard com Lacan para dar sustentação a seu pensamento), os integrantes do Magiluth parecem problematizá-la muito bem em cena. Kierkegaard afirmava que “o momento de decisão é o momento de loucura”, o que levou Lacan a sublinhar que tal momento de loucura “marca a dimensão constitutiva do sujeito”. A cena do Magiluth parece estar atravessada por excessos diante da subjetivação – “e pelo consequente impulso de resolver questões impossíveis concernentes à identidade” do próprio grupo.
Talvez seja concernente à experiência dar dimensão ao acontecimento teatral como um Real levado sempre ao limite extremo da significação. “Buscando uma analogia na arte”, afirma o professor Daly, “poderíamos dizer que esse Real intangível funciona como ‘ponto de fuga, isto é, como algo que não pode ser representado, mas, mesmo assim, é constitutivo da representação”. Sob esse aspecto, a parte em que o espetáculo incorpora em sua enunciação a tríade clássica do repertório do teatro realista russo – composto por A gaivota (1896), O jardim das cerejeiras (1901) e As três irmãs (1904) – funcionaria como uma “tentativa de fugir novamente para a realidade”, que Zizek vê como muito bem explorado em filmes como Alucinações do passado, Linha mortal e a série A hora do pesadelo, com Freddie Krueger. Assim, O ano em que sonhamos perigosamente operaria nos planos do Real real, Real simbólico e Real imaginário, escrutinados por Zizek. O primeiro deles constituiria a experiência “dilacerante” da negação do teatro. No segundo insinuar-se-ia a necessidade de aniquilar o teatro como uma “textura abstrata básica”, a partir da qual se ergueria o projeto do coletivo. O terceiro plano, enfim, operaria no nível da “transgressão subliminar” de que as fantasias de um teatro realista “permaneçam em algum lugar distante” e não “persigam” os atores.
Diante de uma experiência artística bastante impalpável, é preciso agora silenciar para não desdizer. Não sem antes, postular que a liberdade de atuação dos integrantes do Magiluth parece funcionar como uma incisão radical na textura da realidade teatral. Pano rápido.
*Welington Andrade é doutor em literatura brasileira pela USP, na área de dramaturgia. É professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero desde 1997, crítico de teatro da revista Cult e autor de um dos capítulos da História do teatro brasileiro: do modernismo às tendências contemporâneas (Editora Perspectiva/Edições Sesc-SP, 2013).
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