Tags
PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] ANTI-TRATADO DE tordesilhas
A comédia latino-americana promete investir no teatro como um espaço de transculturação
Por Welington Andrade
“Se esse tempo latino-americano nos parece premente, escandaloso, contraditório, como em época de revolução permanente, assim também se nos apresentará o panorama da criação artística; algumas condições vêm de outrora, mas recebem um matiz próprio da época; outras são geradas nos problemas culturais do momento; e há ainda as que apontam para o futuro imediato”. Ángel Rama, Dez problemas para o romancista latino-americano.
Apresentada neste Mirada 2016 como um trabalho ainda em processo, A comédia latino-americana, segunda parte do díptico A tragédia latino-americana (cuja estreia se deu na MIT 2015) e A comédia latino-americana – com direção de Felipe Hirsch e atuação do coletivo Ultralíricos (formado, aqui, por Caco Ciocler, Caio Blat, Camila Márdila, Georgette Fadel, Javier Drolas, Julia Lemmertz, Magali Biff e Rodrigo Bolzan) – reúne uma série de textos da literatura em língua portuguesa e em língua espanhola do continente americano que tematizam “a violência, o binarismo político e ideológico, o sistema elitista, a não valorização da própria cultura, a falta de consciência histórica, entre outros assuntos tomado como característicos da América Latina”, segundo consta no catálogo completo do festival.
A criação mostrada ao público no Teatro Coliseu de Santos na última terça-feira, dia 13 de setembro, constitui uma espécie de “girafa de três pernas”, expressão que o dramaturgo irlandês Samuel Beckett (cuja figura está estranha e entranhadamente implícita na segunda parte do espetáculo) utilizou para tratar do processo de construção de Fim de partida, quando a peça ainda se dividia em dois atos, posteriormente sintetizados em um. O desequilíbrio estrutural da versão de A comédia latino-americana apresentada no dia 13 (no dia anterior, segundo quem esteve presente à sessão, outra foi a conformação dramatúrgica concretizada em cena) configurou-se certamente como um dos elementos que mais chamaram a atenção.
A primeira parte da apresentação evocou certo espírito do teatro de revista, ao mostrar – como se fizessem parte de um todo ecleticamente constituído – seis quadros de naturezas diversas, que dialogam em maior ou menor medida com a trilha sonora original composta por Arthur de Faria, executada ao vivo pelo próprio músico à frente da Ultralíricos Arkestra, cujos integrantes estão reunidos à esquerda do palco. No primeiro deles, que tem início no plano da plateia, Rodrigo Bolzan e Magali Biff encarnam um casal em litígio pelo fato de ele gostar de teatro, e ela somente de telenovelas. A rigor, tal mote se desdobra em uma discussão a respeito da natureza da representação teatral e de sua recepção por parte do espectador – que a dupla de intérpretes, esbanjando talento, aliás, entabula tangida pela máscara do patético. Segue-se um número musical em que todos os atores, dispostos em formação coral e tendo sob suas cabeças chapéus bastante engraçados, cantam uma canção que trata do neoliberalismo. A cada um deles compete o protagonismo de estrofes especialmente entoadas. O quadro é longo (a extensiva duração de todos eles, aliás, constitui, tudo leva a crer, um elemento intencional na gramática do trabalho) e alia a seriedade subjacente ao tema à hilaridade controlada com a qual ele é tratado. Posteriormente, uma alentada declaração em off chega aos ouvidos do espectador sob a forma de um manifesto. O que ocorre depois é o desmonte da descomunal parede de tijolos de isopor erguida como fundo de cena até a primeira metade do palco (a direção de arte do projeto é de Daniela Thomas e Felipe Tassara), realizado em conjunto por todos os atores com a ajuda de integrantes da equipe técnica. Sobre os escombros tem início o próximo quadro, no qual Caco Ciocler, transitando entre os registros cômico-popular e grotesco, encarna um Pero Vaz de Caminha pós-moderno, cujo discurso alia violência, desfaçatez e escatologia. Encerra essa primeira parte uma canção apresentada por Georgette Fadel.
Eis que, após o intervalo, o espírito de revista da primeira parte se dilui e A comédia latino-americana faz da narrativa La libertad total, do escritor argentino Pablo Katchadjian, seu mote. Tendo seus textos em mãos para serem lidos, mas exibindo excelente domínio no exercício de inflexões e intenções, Julia Lemmertz e Georgette Fadel dão início a um jogo de desabrida retórica e imaginação humorísticas, marcas do trabalho desse escritor ainda desconhecido entre nós, cuja filiação literária remonta ao Beckett de Esperando Godot e Fim de partida. Todos os demais atores pouco a pouco entram em cena, demonstrando a mesma prontidão para os jogos dialéticos de Katchadjian.
A materialização dessa loquacidade lúdica sob a forma de espetáculo teatral é bastante desafiadora e aponta para o tom de provocação geral que preside a essa comédia latino-americana capitaneada por Felipe Hirsch. Ainda que anunciando querer somente dar “um recorte” da literatura do continente, o espetáculo pode – conscientemente ou não – vir a apostar no conceito de comarca desenvolvido por Ángel Rama, por meio do qual o crítico uruguaio considerou possível identificar a “homogeneidade de elementos naturais, étnicos e culturais que convergem em formas similares de criação artística”. As questões decorrentes da inserção desses escritores em suas comarcas e de sua participação em um espetáculo teatral tecido pelos fios da transculturação podem fazer do projeto um ótimo espécime por meio do qual se discuta o complexo problema da liberdade de criação no teatro ou simplesmente se desfrute dele.
*Welington Andrade é doutor em literatura brasileira pela USP, na área de dramaturgia. É professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero desde 1997, crítico de teatro da revista Cult e autor de um dos capítulos da História do teatro brasileiro: do modernismo às tendências contemporâneas (Editora Perspectiva/Edições Sesc-SP, 2013).
*Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.