PONTO DIGITAL MIRADA

[Crítica] A saga de medo e superação de Alfonsito
Trabalho do ator é o destaque de Barrio Caleidoscopio, montagem que usa linguagem do clown e poucos elementos de cena
Por Pollyanna Diniz, do blog Satisfeita, Yolanda?
Escrutinar o personagem Alfonsito, do monólogo Barrio Caleidoscopio, do Teatro de La Vuelta (criado no Equador, mas sediado na França), significa olhar os nossos próprios medos e desafios com uma lente de aumento. Talvez enxergar os exageros e superlativos que nos colocamos cotidianamente ao observamos esse outro, um ser metódico e paranoico, construído com maestria por Carlos Gallegos. Também dramaturgo, diretor e pedagogo, o espetáculo tem como principal destaque a atuação do equatoriano, que interpreta o personagem desde 2010. Entre as principais ferramentas utilizadas está o trabalho do clown. Do palhaço que ri e chora de si mesmo, que se faz esperto e idiota, e transforma cada gesto em possibilidade de descoberta, troca e interação com o espectador.
A dramaturgia, também assinada por Gallegos, é baseada numa situação de banalidade: Alfonsito decide sair de casa para ir até a esquina, comprar um pão ou, quem sabe, dois. Mesmo podendo ser considerada frágil, porque sem argumento ou apelo, a história vai sendo ampliada pelo trabalho do ator diante do texto. Alfonsito se prepara para sair de casa, enfrenta os seus medos, encontra algumas pessoas pela rua e até se revela apaixonado. Por fim, consegue superar os obstáculos; ainda que saibamos que o ciclo recomeçará na manhã seguinte, talvez com desafios ainda maiores a serem transpostos. A história não está localizada em nenhum contexto específico. A impressão é de que Alfonsito pode ser um personagem de qualquer época, uma alegoria atemporal que trata do homem e dos seus medos.
Contando essa história em terceira pessoa, um dos méritos do trabalho do ator é estimular a imaginação da plateia, conseguindo levar os espectadores a construírem as suas próprias imagens a partir da dramaturgia. Acompanhamos Alfonsito como num filme, mesmo que não haja elementos de cena. Estamos com ele enquanto escova os dentes, enfrenta a porta gigante, os perigos e os encontros na rua. Isso tudo sem que haja um cenário de elementos, mesmo os mais simples, que poderiam servir de trunfo ao palhaço. Ao contrário, Gallegos conta quase que exclusivamente com o próprio corpo. Em cena, somente o essencial e o mínimo de movimentação. O ator está praticamente a peça inteira sentado numa cadeira. A iluminação complementa a dramaturgia e o trabalho do ator, compondo espaços e significados.
O espectador acompanha e surpreende-se rindo ou se emocionando com a trajetória desse personagem e dos outros tantos interpretados também por Gallegos em Barrio Caleidoscopio. A relação estabelecida com o público se dá de maneira muito rápida e efetiva. De fato, o trabalho do ator e, mais especificamente, do palhaço, só se completa no outro, também responsável por manter esse vínculo.
A peça demonstra que experimentação artística pode ser levada a cabo utilizando-se qualquer linguagem. Para quem acompanhou a programação do Mirada de forma mais ampla, talvez tenha sido a chance de rir um pouco, de conferir-se uma pausa nos temas mais duros de tantas montagens, dando um intervalo nas propostas estéticas baseadas na radicalidade e nos mergulhos verticais. Nesse sentido, Barrio Caleidoscopio foi um sopro de leveza, mostrando que a superação e o riso precisam ser cotidianos.
*Pollyanna Diniz é jornalista, crítica e pesquisadora de teatro. Mestranda em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), há cinco anos edita e produz conteúdo para o blog Satisfeita, Yolanda?, do qual é uma das idealizadoras. Participou de coberturas de festivais e mostras como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (2014, 2015 e 2016), a Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo (2015) e a Bienal Internacional de Teatro da USP (2015). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.`