“A gente traduz uma ideia de linguagem antiga e fora do nosso tempo. Isso significa atualizá-lo e popularizá-lo. Fazemos teatro para chegar nas pessoas”, afirma João Garcia Miguel, diretor português de Yerma, adaptação da peça de teatro do poeta espanhol Federico García Lorca. “Eu tenho acompanhado o festival e existe uma tendência interessante que é a utilização da dramaturgia clássica como trampolim para as questões contemporâneas de uma maneira criativa. Eu acho isso interessante do ponto de vista do teatro contemporâneo”, completa Leonardo Vieira, ministrante da Oficina CPT/Sesc – Centro de Pesquisa teatral: O Corpo Expressivo.

A reflexão, trazidas por ambos participantes do Mirada, não aconteceu por acaso. “Na verdade a gente já contava com isso para dar força ao festival. Isso envolve todo o penso da programação, e como isso reverbera na cidade. O crescimento das ações formativas, que geram performances, também vai multiplicando o número de artistas da cidade. Com esse acesso, os aprendizes de teatro trazem consigo a família, os vizinhos… Gera um boca a boca maior. Por isso também tivemos essa preocupação de trazer textos clássicos de Shakespeare, Otelo etc.”, revela Leonardo Nicoletti, um dos curadores do evento.

“Conto uma piada: um jovem amigo meu disse ‘tenho que ler Odisseia para a escola, mas tenho preguiça’. E eu disse “que pena que tem preguiça, porque é uma história maravilhosa”. Então me ocorreu que traduzindo-a para a linguagem teatral, poderia tirar toda a coisa pesada que tem a antiga linguagem literária, e fazer os jovens descobrirem que não são textos chatos, que podem ser prazerosos. Ao encontrar prazer nesta experiência, é possível que se animem a ler. Isso é o que mais me motiva”, explica Juan Fernando Cerdas Albertazzi, diretor de Odisseia. A sua ideia, surgida em uma brincadeira, é exatamente o resultado que o público recebe. “Achei bem diferente, porque eles conseguem trazer o teatro que a gente perdeu a referência para o agora, com um efeito tão bonito como esse”, reflete o aposentado Ivan Caldas, no público para ver uma obra clássica de Shakespeare dentro do Festival – a adaptação de Rei Lear.

Juan Fernando Cerdas Albertazzi, diretor de Odisseia

Juan Fernando Cerdas Albertazzi, diretor de Odisseia

“Toda essa nova forma de ver o teatro tem a ver com escrita de Tchekhov” adiciona ainda Ana Rosa Tezza, diretora da peça baseada na vida do dramaturgo russo. “Nós usamos as ferramentas de base que ele deixou. Mas existem várias maneiras de interpretar um grande mestre. Ele deixou tudo escrito. Como não somos ele, nos apropriamos do que ele disse de maneira respeitosa. E traduzimos isso da maneira como a gente imagina – e óbvio: cada cabeça uma sentença, cada grupo um trabalho”.

O ator e diretor da peça chilena Otelo, Jaime Lorca, falou ainda sobre a escolha do texto original de Shakespeare. “É a primeira vez que fazemos uma adaptação, nós sempre trabalhamos com textos que criamos, e nos apoiamos muito na literatura, nas novelas, nos contos literários. Pegamos Shakespeare porque descobrimos que tinha muito sangue. Shakespeare era feito há quatro séculos, em teatros onde as pessoas comiam, bebiam, falavam, gritavam. Então era um teatro muito direto. E para o ator é maravilhoso, porque toca todas as notas da alma, da mais sublime às mais baixas e ruins. Tudo na mesma obra, no mesmo personagem”, relata. “É uma tragédia que tem muito melodrama. E nós fizemos esse link que tem nos melodramas na televisão, com as vidas de outras pessoas que se quer viver”, acrescenta Teresita Iacobelli, atriz do espetáculo.

A ideia vai ao encontro do pensamento de João Garcia Miguel. “Quando trabalhamos com um clássico, reinventamos o passado. Deciframos os enigmas e encantamentos que eles tiveram com o mundo, afinal os clássicos sobreviveram. O que tentamos fazer é tentar trazer para hoje, para o nosso dia a dia. O clássico nos ajuda a pensar no passado e olhar para nós mesmos e nos entendermos hoje. O clássico nos ajuda a sermos mais honestos com a gente mesmo”, afirma.

Coletivo Pão & Circo

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