Os espetáculos que utilizam o ponto de vista ou o corpo feminino como parte da narrativa geram reflexão no público do Mirada. “É na arte que o homem se ultrapassa definitivamente”, disse Simone de Beauvoir. A utilização da palavra homem por uma escritora com um simbolismo tão grande pode ou não ter sido proposital. De todo modo, ela serve como uma provocação.
Assim como na colocação da escritora, a curadoria do festival pensou a questão de maneira geral, como explica Leonardo Nicoletti: “As questões femininas são uma coincidência, pois dentro da proposta do festival se pensou na questão da construção da família. Então são diversos espetáculos que falam das relações familiares, para se ter todos os lados: o machismo, a mulher oprimida, a reafirmação de questões femininas, a beleza”.
A presença feminina na programação acaba trazendo um forte tom emocional, nem sempre delicado. O espetáculo peruano Criadouro tem três atrizes que contam suas histórias de vida sob a perspectiva de filhas de mulheres fortes. A narrativa não-linear as apresenta também como mães e tia – a dúvida sobre a maternidade também entra em foco. Nadine Vallejo, codiretora da produção, conta que de 2011 até agora a peça foi encenada continuamente em Lima. Ela credita o sucesso à empatia que as pessoas criam com os depoimentos (extra)ordinários, comuns em muitas famílias. “O público sai emocionado da apresentação”, conta.
Yerma, do diretor português João Garcia Miguel, enxerga a mulher como um elo de ligação entre a terra e a vida. “Pra mim esse assunto foi importante porque eu nunca tinha olhado pra mulher como este símbolo de ligação com o mundo. Ela é aquilo que faz tudo andar, e continuar a procriar e a existir. Nunca tinha pensando tão fortemente na mulher como símbolo de luz e de continuidade na vida humana. Ao meu ver acho que as mulheres de hoje esquecem do quão fundamental é o papel delas aqui e a sua existência. É uma mensagem importante para sempre lembrar: O que é ser mulher”. A peça é baseada em um poema do espanhol García Lorca, e mostra a infertilidade de um casal sob o ponto da personagem-título.
Às vezes o papel da criadora do mundo aparece com o único propósito de celebrar sua delicadeza. É o caso de Utopia, da coreógrafa espanhola Maria Pagés. Naiá Gago, produtora do Teatro Coliseu, onde a peça foi apresentada, conta que se emocionou no espetáculo: “Um gestual e uma feminilidade espetaculares. A Maria Pagés, que já é uma senhora, representou a essência da beleza, do corpo longilíneo, dos gestos, dos leques e símbolos femininos”.
Em contraponto, o espetáculo chileno Otelo traz a representação da mulher oprimida. “Otelo é um femicida. No Chile temos um femicídio por semana, é uma sociedade muito machista. Como ser dono de uma mulher? A única forma de ser dono totalmente, é matá-la. São mulheres que estão submetidas a um mundo masculino e militar”, comenta o o ator e diretor do espetáculo, Jaime Lorca.
O dicionário português brasileiro define a palavra “ultrapassar” como uma transposição. A relação das palavras com a afirmação de Beauvoir não parece ter sido mais acertada para o Mirada. Aqui, a mulher se transpôs na arte, e mostrou a sua força na sobrevivência.
Coletivo Pão & Circo