Rodrigo García – Sesc Mirada https://mirada.sescsp.org.br/2016 MIRADA - Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos Tue, 31 Jan 2017 21:44:28 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.5.8 [Crítica] Uma ode ao jorro discursivo https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/uma-ode-ao-jorro-discursivo/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/uma-ode-ao-jorro-discursivo/#respond Tue, 13 Sep 2016 14:27:29 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=1901 Por Pollyanna Diniz, do blog Satisfeita, Yolanda?

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Andar pela cidade ou ir a algum lugar inusitado para assistir às cenas de um espetáculo. Acompanhar os atores preparando uma refeição durante a peça, enquanto atuam, e ser convidado a comer depois, todos juntos, atores e público. Chocar-se (ou, ao menos, deixar-se surpreender), com a utilização de galos calçando tênis no palco do teatro. Hoje, 13 de setembro, estamos ainda no 6º dia do Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, mas quem está acompanhando a programação desde o início, já pôde vivenciar essas situações descritas acima e outras tantas mais. Como se vê, a experiência é muito cara ao teatro contemporâneo. Talvez pela correria dos nossos dias, pela quantidade de estímulos a que somos submetidos, pela transformação do cotidiano em banalidade, o teatro tenha cada vez mais assumido a tarefa de promover ou provocar a experiência.

Ainda na fila, como de costume, recebemos a orientação para desligar os celulares e ainda um aviso não tão rotineiro: “tomem cuidado ao subir as escadas e pisar no chão da sala”. Era preciso estar bastante desatento a ponto de tropeçar nos corpos dos atores/performers deitados no chão da sala da Cadeia Velha, na Praça dos Andradas, em Santos. Os corpos que compõem o trabalho World of Interiors, cujos conceito, direção, espaço cênico e luz são assinados pela dupla Ana Borralho e João Galante, de Portugal, estavam praticamente inertes. De olhos fechados, fones de ouvido, sussurravam palavras inaudíveis a quem adentrava o local.

Especulo que, como grande parte dos espectadores daquela sessão específica já tinha ampla intimidade com os procedimentos do teatro contemporâneo, ou havia mesmo tomado conhecimento da proposta da performance anteriormente, foi muito rápido, quase não houve gap, até que se estabelecesse o cenário que poderia durar pelas próximas duas horas. As pessoas foram sentando ao lado dos atores, baixando as cabeças. Ou deitando bem pertinho, para tentar colocar-se no mesmo plano e aí, quem sabe, ouvir algo, decifrar o que diziam baixinho. No geral, um esforço individual, mas também coletivo, já que as pessoas faziam silêncio ou abriam espaço para que mais alguém pudesse também chegar perto daquele performer com muitos ao seu lado.

O espectador tinha completa liberdade para mover-se pela sala, caminhar por entre aqueles corpos estendidos, escolher algum performer para deter-se um pouco mais. Dali mais alguns instantes, quem sabe, escolher outro. Não havia nenhuma ordem ou indicação a seguir. Quem ficou de longe por algum tempo, podia perceber a distribuição de todos aqueles corpos – performers e espectadores – pelo espaço. Uma instalação cênica, visual, performática. Em alguns momentos, inclusive, espectadores misturavam-se de fato aos performers, também deitados, de olhos fechados. Em alguns momentos, um longo silêncio era instaurado, até que os textos recomeçassem.

Não era possível, pelo menos não foi para mim, acompanhar de fato o que diziam os performers e, muito menos, estabelecer conexões diretas entre os discursos deles. Essa, desconfio, não era mesmo a intenção. Os textos sussurrados pelos atores são fragmentos de escritos teatrais de autoria de Rodrigo Garcia, mesmo autor e diretor de 4, espetáculo que abriu o Mirada, e levou os galos, citados no início deste texto, ao palco. O argentino radicado na Espanha tem uma escrita bastante peculiar, fragmentada, com textos virulentos, frases de efeito, que podem discorrer sobre relações humanas destroçadas, capitalismo, insegurança, amor.

Ouvi, por exemplo, um fragmento de uma história de um pai (ou mãe), que embebedava a criança antes de deixá-la na escola, para que ela fosse capaz de lidar com aquele sistema educacional. Alguma frase sobre amar e conformar-se. Outra dizia que a vida era uma merda. E que mesmo pessoas que estiveram à beira da morte, sobreviveram a um câncer, voltam a ter uma vida merda. Ouvi também um adolescente contando que decidiu tomar as rédeas da própria vida. Em algum momento, lia Sêneca enquanto os amigos viam Harry Potter. Ou ainda: “Ao liberalismo, tende piedade dos que não podem comprar. (…). Ao FMI, tende piedade da Argentina. Às lágrimas, tende piedade dos fracos. ”

Em World of interiors, o fluxo de pensamentos dos próprios espectadores eram parte inerente da experiência proposta pelos portugueses. Enquanto deitávamos ao lado de alguém, aquele discurso longe e sussurrado do performer, esforçando-nos para ouvir alguma coisa, era quase impossível impedir a mente de vagar e construir os nossos próximos jorros discursivos internos.

A potência da experiência no teatro, no entanto, talvez esteja em conseguir produzir efeitos significativos, dos quais não tomamos, às vezes, nem consciência. Mas guardamos em algum lugar da memória. Como o cheiro daquela comida do espetáculo, a rua onde ouvimos aquela história de amor, a cena que me remete às minhas próprias questões. Nesse sentido, a impressão é de que a potência de World of interiors se esgarça, se esvai, muito rapidamente. Talvez porque os espectadores estejam interagindo com corpos de performers praticamente inertes; talvez pela dificuldade em atentar-se ao texto e conseguir então fazer ressignificações simbólicas desses discursos.

Na experiência estética proposta por Ana Borralho e João Galante, o espectador precisa apoderar-se da sua autonomia. Estar disposto a compor ele próprio o tipo de relação que deseja estabelecer com o trabalho. Um espectador que precisa mover-se, realizar. E, também, lançar-se ao risco. Nesse caso, o imponderável talvez esteja principalmente em nós mesmos: os nossos próprios pensamentos, lacunares, caóticos, belos ou cruéis.

*Pollyanna Diniz é jornalista, crítica e pesquisadora de teatro. Mestranda em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), há cinco anos edita e produz conteúdo para o blog Satisfeita, Yolanda?, do qual é uma das idealizadoras. Participou de coberturas de festivais e mostras como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (2014, 2015 e 2016), a Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo (2015) e a Bienal Internacional de Teatro da USP (2015). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.

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[Crítica] Crítico da contemporaneidade https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/critico-da-contemporaneidade/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/critico-da-contemporaneidade/#respond Fri, 09 Sep 2016 16:21:03 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=1408

por Daniel Schenker

Encenação assinada por Rodrigo García, 4 fornece ao público canais heterogêneos de enunciação – o texto dito em cena, as ações realizadas pelos atores, as falas em off, as projeções – com o intuito de estimular a autoria de cada espectador, incumbido de realizar a própria montagem. No entanto, a busca por um espectador autônomo é frisada ao longo da apresentação, como uma espécie de mensagem, evidenciando, desse modo, uma certa condução do olhar e uma relativa diminuição das possibilidades de apropriação da cena.

Há um momento que sintetiza o discurso de García: aquele em que a imagem de uma planta é projetada juntamente com inscrições que realçam o turbilhão de sons e imagens que assola o mundo contemporâneo. Os videoclipes resumem essa tendência ao não deixarem espaço para o espectador construir um ponto de vista, completar o que vê com a sua imaginação, para a possibilidade do silêncio. Nesse sentido, García parece se opor a uma cena marcada por estímulos ruidosos e pouco propositivos que remete a uma embalagem de teatro contemporâneo norteada pela tentativa de captação e, ao mesmo tempo, pelo deslumbramento diante dos excessos da atualidade.

Não por acaso, 4 conta com uma longa passagem (possivelmente, a melhor da encenação) destituída de elementos dispersivos (a não ser o figurino, propositadamente contrastante em relação à natureza econômica do momento), na qual um ator traz à tona uma infância atravessada pelo contato forçado – mas afetuoso – com três adultos, de aparência bem mais idosa que a faixa etária, dentro de uma relojoaria. García não sobrepõe qualquer provocação visual à fala do ator porque o texto chega em cena preenchido por imagens.

4 sugere que aqueles que não desenvolvem um olhar específico em relação ao mundo vivem numa espécie de estado vegetativo, na medida em que obedecem passivamente ao marketing sedutor dos dias de hoje, guiados pela lógica do consumo, a exemplo das presenças de duas meninas, que surgem excessivamente maquiadas, com penteados e roupas extravagantes, espalhafatosos. O próprio espectador é provocativamente convidado a exercer o exibicionismo da época em que vive ao ser chamado a subir ao palco e dançar diante de toda a plateia, além de permanecer em cena (apenas uma pessoa) para realizar uma entrevista com uma atriz do elenco, que, pela posição privilegiada, tende a conduzir a conversa – e na direção do constrangimento ao lançar questões sexuais.

Talvez o espectador não se dê conta da carga crítica contida em 4 e não só assista como participe de forma alienada, sem se deixar tocar pela tristeza de um espetáculo em que galos surgem em cena portando tênis, com dificuldade de locomoção, em que os atores permanecem atados pela discórdia após o rompimento de uma teia de afeto, em que a sexualidade desponta por meio de imagens traumáticas – como na evocação da mencionada infância e na imagem final das larvas engolidas por plantas carnívoras, instante que remete a Golgota Picnic, outro trabalho de García – ou insatisfatórias – a exemplo da cena em que os atores, ensaboados, ensaiam uma relação sexual que não chega a acontecer.

Caminhando na contramão da inconsistência da cultura de verniz – simbolizada pelo mencionado costume de se debruçar de maneira apressada, meteórica até, sobre obras consagradas -, García propõe operações instigantes – a julgar pela interferência sobre o quadro A Origem do Mundo, de Gustave Courbet. Contudo, mais do que exibir referências, apresenta um espetáculo que expõe corpos desamparados revelados em luz fria, dura, e potencializados por sonoridade rascante. Mesmo que a transparência do discurso reduza, em alguma medida, a atividade do espectador-autor reivindicado pelo diretor, 4 afirma a força criativa do teatro de García.

*Daniel Schenker é bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e da revista Preview. Escreve para os sites Teatrojornal (teatrojornal.com.br) e Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. É membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio, Questão de Crítica e Reverência.

**Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.

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