fonemol – Sesc Mirada https://mirada.sescsp.org.br/2016 MIRADA - Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos Tue, 31 Jan 2017 21:44:28 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.5.8 [Crítica] Sobre construção de sentidos e inadaptações do ser https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/sobre-construcao-de-sentidos-e-inadaptacoes-do-ser/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/sobre-construcao-de-sentidos-e-inadaptacoes-do-ser/#respond Wed, 14 Sep 2016 12:15:39 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=2044 Por Pollyanna Diniz, do blog Satisfeita, Yolanda?

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Como elaborar sentido quando nos escapa o domínio da língua falada? Em Blanche, o significado racionalizado das palavras abre espaço à imaginação, à musicalidade e à intenção do corpo do ator. O encenador Antunes Filho volta a experimentar em cena o que intitulou de fonemol, uma língua criada pelos próprios atores. Ao menos nos minutos iniciais, a sensação é a de que estamos assistindo, sem legendas, a um espetáculo falado em russo, finlandês (uma língua com a qual nunca tenhamos tomado qualquer contato).

Na peça Nova Velha Estória, de 1991, uma releitura de Chapeuzinho Vermelho, Antunes também levou o fonemol ao contato com o espectador. Mais recentemente, a língua era utilizada pelos atores apenas durante os ensaios, compondo parte do treinamento desenvolvido pelo diretor no Centro de Pesquisa Teatral (CPT), no Sesc Consolação, em São Paulo. Foi assim, por exemplo, nas montagens de A pedra do reino (2006) e Policarpo Quaresma (2010).

Prescindir das palavras em Blanche causa, como dito, estranhamento inicial. Além do que, tratamos da adaptação de Um bonde chamado desejo, clássico da dramaturgia, seguramente o texto mais conhecido de Tennessee Williams. Como então se desprender da necessidade de entender de forma cartesiana os diálogos entre Blanche, Stella e Stanley, aqui interpretados respectivamente por Marcos de Andrade, Andressa Cabral e Felipe Hofstatter?

Uma das possibilidades talvez se dê pela musicalidade surgida a partir da utilização do fonemol. Há uma reformulação imediata do que esperamos com relação a entonações, corpos que não acompanham intenções tradicionais de voz. Os atores atribuem ênfase e intensidade de acordo com a ação e não baseados na parametrização que o texto geralmente exige.

Além disso, o fonemol parece contribuir ao objetivo de tentar borras as barreiras entre atores e espectadores, teatro/ficção e realidade. Seja na sala de ensaio do CPT ou no galpão da Sabesp, a Casa Rosada, em Santos, os sons que vem não apenas da atuação frontal, mas de fora daquele retângulo, das interferências dos atores que não compõem essa tríade principal, nos fazem sentir como se também fôssemos vizinhos de Stanley e Stella e, através de paredes muito finas, pudéssemos acompanhar essa história. A sensação é ampliada pela luz de serviço, branca, sempre ligada, sem alterações.

Outra questão, entre tantas que poderiam ser apontadas, que não pode faltar à apreciação à Blanche é a subversão do diretor na escolha de um homem para fazer o papel de Blanche. A personagem se configura como um elemento destoante na representação realista. De alguma forma, a Blanche de Marcelo de Andrade (com o rosto pintado de branco, numa referência talvez à relação de Antunes com a obra de Kazuo Ohno), interpretada com uma sensibilidade tocante, cumpre a função de trazer tensão ao estabelecido da encenação. O ator foge aos estereótipos bastante comuns em montagens de Um bonde chamado desejo da personagem histérica, louca. Aqui Blanche é uma inadaptada, que não aceita uma lógica circunscrita ao campo do racional. O próprio corpo contribui para reforçar esse sentido.

Na encenação de Antunes Filho, a relação entre as irmãs Stella e Blanche toma a dianteira da narrativa. As contradições e nuances de Stella são ressaltadas pelo desempenho de Andressa Cabral, uma ruiva de traços peculiares. Ao mesmo tempo em que demonstra toda afetividade pela irmã, Stella deixa-se permanecer no relacionamento abusivo com Stanley. Essa violência naturalizada, aqui principalmente contra a mulher, ganha contornos muito significativos na encenação, incomodando, doendo na carne, e não simplesmente servindo ao propósito da dramaturgia.

A aposta no fonemol por Antunes Filho só se mostra viável de fato por conta desse elenco de que dispõe o encenador. Em nenhum momento, por exemplo, os atores tentam, através da amplitude dos gestos do corpo, resolver a questão da língua, como se houvesse necessidade de compensação à compreensão do espectador. Em algumas cenas, Stella e Blanche desenham figuras com os dedos no ar. Não é necessária nenhuma palavra para que a beleza do reencontro das irmãs, por exemplo, surpreenda completamente a plateia. Diametralmente oposta é a crueza do estupro de Blanche por Stanley, marido da irmã dela.

Fica notório que, depois dos primeiros minutos, a percepção de que a apreensão da obra se dá por outras vias leva o espectador a se desapegar da lógica a que estamos acostumados. Ainda assim, há ruídos nessa relação. Nesse sentido, qual a motivação de oferecer ao espectador um roteiro com a descrição das cenas da história antes do início do espetáculo? A intenção não era permitir se libertar desse significado colado das palavras? Ao mesmo tempo, é preciso confessar a dificuldade em ter distanciamento para dialogar sobre essa questão, a necessidade ou não do roteiro, já que o olhar de quem conhece a história (que foi inclusive levada ao cinema por Elia Kazan, com Vivien Leigh e Marlon Brando no elenco) de alguma forma já estaria condicionado a buscar identificações e relações lógicas. Por outro lado, em alguns momentos específicos, mesmo com roteiro, é bastante complicado dar a dimensão do que está acontecendo – como quando Blanche chora ao falar da morte do ex-namorado. Essa cena, para quem não tem um conhecimento prévio, não assume a importância e complexidade que adquire no texto.

Mesmo com quaisquer ruídos, Blanche se revela uma obra carregada de posicionamento político por muitas razões, algumas delas já colocadas neste texto, como o alerta à naturalização da violência contra a mulher. Outra fundamental é conferir autonomia à imaginação, inteligência e sensibilidade do espectador. Assumindo mais do que nunca que o espectador é um coautor do espetáculo, que só acontece de fato através do encontro de todos os envolvidos nessa arte de caráter coletivo que é o teatro.

*Pollyanna Diniz é jornalista, crítica e pesquisadora de teatro. Mestranda em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), há cinco anos edita e produz conteúdo para o blog Satisfeita, Yolanda?, do qual é uma das idealizadoras. Participou de coberturas de festivais e mostras como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (2014, 2015 e 2016), a Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo (2015) e a Bienal Internacional de Teatro da USP (2015). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.

**Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.

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