Espanha – Sesc Mirada https://mirada.sescsp.org.br/2016 MIRADA - Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos Tue, 31 Jan 2017 21:44:28 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.5.8 [Crítica] Sobre simulacros e tentativas de proporcionar experiência https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/critica-sobre-simulacros-e-tentativas-de-proporcionar-experiencia/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/critica-sobre-simulacros-e-tentativas-de-proporcionar-experiencia/#respond Sun, 18 Sep 2016 00:34:07 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=2740 Por Pollyanna Diniz, do blog Satisfeita, Yolanda?

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Em Fugit, o grupo espanhol Kamchàtka propõe ao espectador a experiência, que se desdobra e pode perpassar diversos níveis. Apresentado nas ruas do centro histórico de Santos no Mirada, o espetáculo traça um percurso físico, sensorial, afetivo, simbólico. Ao chegarmos ao ponto de encontro marcado, no Centro de Pesquisa das Narrativas Visuais do Valongo, os atores – todos carregando malas antigas – nos levam a um rápido passeio de bonde. Desembarcamos em poucos minutos numa construção em ruínas. Lá dentro, devagar, atravessamos um caminho pontuado por tábuas, até uma espécie de instalação cênica. Em cima de um monte de areia, mapas são espalhados; noutro canto, no alto, uma mulher separa lençóis e joga para os companheiros e até para alguns espectadores. Mesmo que o trajeto pela construção até essa cenografia seja praticamente solitário, todos ocupamos o mesmo espaço.

Em determinado momento, os atores vão escolhendo e separando os espectadores em grupos e levando para lugares distintos. Começa então, de fato, a experiência de Fugit. Último espetáculo de uma trilogia – antes vieram Kamchàtka (2007) e Habitaculum (2010) – a peça tenta nos aproximar da experiência dos refugiados. Como sabemos, a migração forçada, uma questão também tratada durante o festival por Birdie, do espanhol Agrupación Señor Serrano, se tornou uma tragédia humanitária de proporções mundiais.

Na proposta cênica de Fugit, a primeira dimensão é a do deslocamento, que começa desde o ponto de encontro, mas só vai se acentuar ao longo do espetáculo. A segunda, a da barreira da língua. Como para acentuar que todos somos estrangeiros, o espetáculo não é falado, nenhuma palavra será dita pelos atores. E a terceira talvez seja a da separação. O filho adolescente não estará com a mãe; casais, namorados não ficarão juntos na peça; os amigos do colégio distantes.

Minutos depois, os atores nos mostram passaportes e celulares; e nos impelem a colocar dentro de um saco de lixo celulares e carteiras de identificação. As pessoas se entreolham, como se questionassem entre si a necessidade de entregar mesmo os objetos, se confiam naqueles homens. Sem os nossos documentos, é como se estivéssemos mais frágeis, tendo nossas identidades questionadas. Não podemos mais provar quem somos, deixamos de ser alguém com nome e número, protegidos pela suposta segurança das regras das leis. Sem os celulares, vemos tolhida a nossa capacidade de comunicação, de estar em contato com o outro, para além daqueles que nos rodeiam fisicamente. Mas se o refugiado não tem escolha, geralmente deixando tudo para trás, fugindo de situações que extrapolam os limites da segurança da vida, aos espectadores também não é aberta a possibilidade da recusa. Começam ali os exercícios do desapego e do desamparo e, principalmente esse último, vai se prolongar por toda experiência.

A partir de então, andamos de ônibus escondidos por lençóis, atravessamos ruas encostados nas paredes, entramos sorrateiramente em lugares estranhos, nos escondemos por trás de carros no estacionamento, ficamos por alguns minutos de um banheiro minúsculo. Um dos momentos mais fortes é quando o ator tira da mala, com todo cuidado, um pedaço de pão. E as pessoas são levadas a dividir o alimento. No meu grupo, um dos atores também compartilhou a água mineral de um espectador. A privação, a fome, recorrentemente, o desamparo. Há também uma cena simples e tocante, sobre a possível falência dos projetos de fuga e imigração. Quantos ali escapariam com vida, se tudo fosse verdade e não uma encenação? E, mesmo que dê certo, que as famílias consigam estar juntas, como trabalhar a questão da identidade, do pertencimento? A angústia do exílio, do ser estrangeiro, do não-lugar.

O vídeo de um menino de cinco anos, coberto de pó e ensanguentado, assustado, mas resignado, vítima de um ataque aéreo na cidade síria de Aleppo, ou a foto do garoto morto na praia da Turquia, depois que a embarcação em que estava ter naufragado, conseguem nos mobilizar. Com forte apelo, essas imagens viralizam pelas redes sociais muito rapidamente, conseguindo nos dar indícios e nos transportar à realidade de crueldade diária enfrentada pelos refugiados. Fugit opera nessa mesma lógica: tentar nos sensibilizar através da experiência.

Há questões, no entanto, que se mostram nevrálgicas. A principal delas é a necessidade de que o espectador esteja realmente disposto a se envolver, a jogar, a correr pelas ruas da sua cidade como se fosse um fugitivo, a se permitir vivenciar as situações. Nesse sentido, talvez alguns fatores possam amplificar a possibilidade da experiência ao espectador. A sessão realizada no período da noite seria mais impactante do que a realizada durante a noite? Ou um dos trajetos mais disparador do que outros? Nesse cenário, é importante ressaltar a qualidade dos atores. Os seus corpos permanecem, desde o início da montagem, em estado constante de jogo e de capacidade de improviso.

Tanto a potência quanto a fragilidade de Fugit estão relacionadas à mesma raiz: a simulação da realidade. Ao mesmo tempo em que a proposta do grupo pode nos colocar na situação de crise, de assumir o lugar do outro, de questionar o mundo em que vivemos, tudo será sempre um jogo. E, nesse sentido, se o jogo por algum motivo não se estabelecer com o espectador, a experiência fica diminuída. A impossibilidade – as dimensões do real superam quaisquer tentativas – de vivenciar de fato a realidade de um refugiado é uma questão instransponível. O que se pode fazer, e o grupo Kamchàtka tenta com inteligência, é tirar o máximo de proveito da experiência que o simulacro pode nos oferecer.

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Pollyanna Diniz é jornalista, crítica e pesquisadora de teatro. Mestranda em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), há cinco anos edita e produz conteúdo para o blog Satisfeita, Yolanda? (www.satisfeitayolanda), do qual é uma das idealizadoras. Participou de coberturas de festivais e mostras como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (2014, 2015 e 2016), a Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo (2015) e a Bienal Internacional de Teatro da USP (2015). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.

 

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[Crítica] Hamlet – é preciso dizer de novo https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/hamlet-e-preciso-dizer-de-novo/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/hamlet-e-preciso-dizer-de-novo/#respond Sat, 17 Sep 2016 00:56:42 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=2272 Por Maria Eugênia de Menezes (site Teatrojornal – Leituras de Cena)

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Mais um Hamlet. E por que mais um? É verdade que cada nova versão – ou cada boa versão, ao menos – carrega em si uma leitura própria da obra tão conhecida. Também não faltam motivos para revisitar o texto mais montado de todos os tempos. E o ator Emanuel Aragão, que interpreta esse Hamlet – Processo de Revelação”, enumera diversos deles. Fala sobre o personagem como um precursor do existencialismo, de sua pioneira noção de individualidade dentro do teatro, de sua mensagem de livre arbítrio, da dificuldade de fazer escolhas. Mas nenhuma dessas razões, ele admite, resolve a questão: por que voltamos a Hamlet? Se ainda existe tanto por ser dito, por que seguir a repetir as palavras que todo mundo (ou uma parcela substancial das platéias de teatro) já escutou?

Os Irmãos Guimarães são os responsáveis pela direção desse “Processo de Revelação”. Criado em Brasília, o coletivo trafega, há mais de 20 anos, entre o teatro e as artes visuais e, continuamente, reafirma a preponderância da experiência sobre a representação. No lugar do teatro stricto sensu podem entrar outras formas de criação. Seja por meio de uma performance ou de uma instalação, o essencial é instar o público a descobrir novas possibilidades de olhar e de se relacionar com um objeto artístico.

Para concretizar tal ambição, Adriano e Fernando Guimarães já se detiveram sobre autores consagrados da literatura dramática – especialmente sobre Samuel Beckett, que tanto material lhes rendeu para montagens e investigações. Agora, voltam a Shakespeare. E o verbo voltar, neste caso, não foi utilizado para fazer referência a criações anteriores dos diretores, mas a uma imagem do bardo que a atual encenação reafirma. Como se o teatro shakespeariano se impusesse como um destino inescapável. Pode-se passar a vida a flanar por aí. Dedicar-se a investigar muitas coisas, a montar muitos autores. Mas o grande dramaturgo britânico paira sobre todos. E a hora do acerto de contas terminará por chegar.

No encontro entre esses criadores e a saga do príncipe da Dinamarca não se dá propriamente a montagem de uma peça. Espectadores irão presenciar e participar de certo ritual de dissecação. E o que devem encontrar não será propriamente a grande revelação sobre o título tão celebrado, a leitura definitiva. Mas uma sincera aproximação entre artista e personagem, entre autor e ator, entre tempos que podem coexistir ainda que separados por mais de 400 anos. Sinceridade soa como termo fora do lugar quando se está a falar de teatro. Nesse pacto de mentiras que se dá entre palco e platéia, contudo, há espaço para muitos arranjos. Naqueles mais felizes, cabe, inclusive, a verdade.

No lugar de uma encenação de Hamlet, acompanha-se a uma desconstrução, uma apresentação de questões e aspectos contidos no texto. Existe um quê de leitura comentada. Em diversas passagens, Emanuel Aragão discorre sobre as intenções e arranjos que cercam determinadas cenas e diálogos. Convida os espectadores a reagir e a participar da discussão. Há certa semelhança com o que seria a revelação de um processo de criação e ensaio. Aquele trabalho – geralmente ocultado após a obtenção da obra final  –  de se tentar compreender cada intenção, cada movimento, de encontrar a melhor tradução. Mas não é bem isso o que está em cena.  Não é só isso.

O intérprete compartilha episódios biográficos, como a morte do próprio pai. Chega a evocar situações fictícias em que as resoluções são adiadas ou levadas a cabo. Um homem que decide se matar e esmorece. Uma mulher que vai ao cemitério encontrar o túmulo da mãe que nunca chegou a conhecer. Entre essas pontas, está o seu estupor e perplexidade diante de Hamlet. Todos os personagens que o cercam serão apenas evocados – alguns, como é o caso de Ofélia, não merecem mais do que uma breve menção. Cenas, atos inteiros são negligenciados. Em contraponto, somos convidados a nos deter sobre determinadas passagens. As filigranas que poderiam vir a desvelar o tormento – e a grandeza – desse herói titubeante.

Diante da profusão de traduções disponíveis hoje, a exposição de mais uma não deveria fazer diferença. Nesse caso, faz. O ator, que também assina a dramaturgia, sublinha com a sua leitura alguns pontos capazes de transformar o espectador em seu cúmplice nessa busca.  O famoso solilóquio do “ser ou não ser” merece grifo em algumas palavras e sinais de pontuação. A indecisão entre calar as dores ou pegar em armas é examinada ponto a ponto, frase a frase.

Hamlet é magnânimo porque não sabe, porque, diante de cada situação, duvida. Seu desejo se dissolve. Suas certezas são frágeis. Os heróis, os líderes da história ocidental, construíram suas trajetórias a partir de crenças inabaláveis, persistindo na fé mesmo quando tudo e todos se impunham como obstáculos.  Hamlet é o oposto do sujeito de ação, do político, do guerreiro. É inconstante, é o poeta a perder-se em meio às inutilidades e às miudezas do mundo. Não é o grande homem, é o pequeno homem.

O horror da morte o paralisa, assim como a nós. Somos todos pequenos.  Preferimos suportar as misérias conhecidas ao mal desconhecido. E isso também já havia sido dito – e reafirmado, sublinhado – em tantas e tantas montagens que já subiram aos palcos do mundo. Mas é sempre bom ouvir de novo. Sempre bom que alguém tente dizer novamente. E falhe novamente. E falhe melhor.


Maria Eugênia de Menezes é jornalista e crítica teatral, atuou como repórter e crítica de teatro do Caderno 2, do jornal O Estado de S.Paulo, com experiência na cobertura de festivais no Brasil e no exterior. Também escreveu na Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas como o Circuito Cultural Paulista e membro do júri de prêmios como Prêmio Bravo! de Cultura, APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e Prêmio Governador do Estado de S.Paulo.

*Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.

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Espetáculos que sobem a serra https://mirada.sescsp.org.br/2016/digital/espetaculos-que-sobem-a-serra/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/digital/espetaculos-que-sobem-a-serra/#comments Fri, 16 Sep 2016 15:00:56 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=2224 Por Patrícia Diguê

A partir deste sábado (17), espetáculos que participam do Mirada serão levados a outras unidades do Sesc, dentro do projeto Extensão Mirada. Eles passam pelo Sesc Consolação, Pompeia, Pinheiros, Bom Retiro, Ipiranga, Vila Mariana e Sorocaba. Confira:
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Cuando todos pensaban que habíamos desaparecido – gastronomiaescénica (MEX)

O subtítulo dessa criação coletiva fornece outras pistas para o que virá: gastronomia cênica e teatro documental baseado na comida e na festa dos mortos. Ao contrário do tabu ocidental, na cultura mexicana o Dia de Finados é celebrado com as casas enfeitadas e os familiares e amigos preparando os pratos favoritos daqueles que não se encontram mais fisicamente entre eles. Sábado e domingo  17 e 18/09 – Pompeia

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¿Que haré yo con esta espada? (Aproximación a la ley y al problema de la belleza) (ESP)

O trabalho que estreou no Festival d’Avignon, em julho, parte de dois crimes transcorridos em Paris, em diferentes épocas: o canibalismo do universitário japonês Issei Sagawa, que esquartejou a namorada e declarou tê-lo feito por amor em 1981, e o terrorismo dos ataques em série que deixaram 130 mortos na noite de 15 de novembro de 2015. Apesar de macabros, a artista catalã Angélica Liddell prospecta em cena uma tomada de consciência da própria existência, uma rebelião contra o racionalismo. Sábado e domingo – 17 e 18/09 – Pinheiros

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No daré hijos, daré versos (URU)

O drama intercala prosa e canções a partir da vida e da obra da poeta Delmira Agustini (1886-1914), cuja memória e arte andavam relegadas até ganhar novo alento nos últimos anos. Ela morreu assassinada a tiros pelo ex-marido. Referência no teatro de pesquisa em seu país, a dramaturga e diretora Marianella Morena compõe três atos em movimentos distintos em gênero e linguagem, do realismo ao hiper-realismo. Questiona a premissa de verdade única borrando o real, a história e a ficção. Terça e quarta – 20 e 21/09 – Ipiranga

dinamo

Dínamo (ARG)

Acompanhamos o inusitado contexto de três mulheres que compartilham um trailer perdido em alguma estrada qualquer. Em princípio, elas não sabem da presença das demais. A peça expõe como tanta solidão e estranhamento podem gerar novas energias à vida. Quarta – 21/09 – Sorocaba / Sábado e domingo – 24 e 25/09 – Bom Retiro

contadora

La contadora de películas (CHI)

Não é difícil imaginar as dificuldades de quem vive e trabalha na região das minas de salitre no deserto de Atacama, no norte chileno. Foi lá que o escritor Hernán Rivera Letelier, de 66 anos, passou a infância e, por isso, escolheu a geografia isolada para ambientar a história de María Margarita no livro lançado em 2009 e adaptado sob mesmo título pela Cia. Teatrocinema, em 2015. Quarta e quinta – 21 e 22/09 – Vila Mariana

psico

Psico/embutidos, carnicería escénica (MEX)

Essa instalação cênica replica o aparelho digestivo e propõe uma vivência sensorial. A obra deglute os espectadores, estimulados a transitar pela estrutura em diferentes níveis, no limite de oito metros, contornando obstáculos até a etapa em que todos são, simbolicamente, expulsos do mecanismo. O objetivo do autor e diretor Richard Viqueira é transmitir a sensação de cumprir essa travessia dentro do organismo vivo. O itinerário é feito de encontros com os 19 atores, um a um, cujas idades variam na casa dos 20 aos 80. De sexta a sábado – 23/09 a 01/10 – Consolação

**Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.

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[Crítica] Canção de amor para os assassinos https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/cancao-de-amor-para-os-assassinos/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/cancao-de-amor-para-os-assassinos/#respond Thu, 15 Sep 2016 21:08:22 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=2291 Por Ivana Moura, Do blog Satisfeita, Yolanda?

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O caráter radical do teatro de Angélica Liddell se abre em todo seu esplendor e crueldade no espetáculo ¿Qué Haré Yo Con Esta Espada?, apresentado no MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos.  Essa mulher de aparência frágil investe como uma metralhadora a cuspir verdades difíceis de engolir, a articular e subverter conceitos para remeter ao subtítulo da montagem (aproximación a la Ley y al problema de la Belleza).

Os fundamentos monstruosos do ser humano são perfilhados, sulcados em papéis de torturador e vítima em cenas perturbadoras, extremas. Os impulsos mais perigosos são cavoucados numa busca pela beleza e amor. Da ferocidade do amor quando se sente ameaçado. “O horror precisa do nosso amor”, escreveu ela. Ou, seguindo Nietzsche sobre a liberdade oferecida pela natureza e não pela lei.

A artista catalã trafega por territórios complexos, em pulsações de raiva e indignação, violência física e verbal.  Sequências de dança surpreendentes, trechos de óperas, de heavy metal, meninas louras nuas se contorcendo violentamente. Três japoneses (incluindo um dançarino arrebatador) que devoram peixe cru e uma gueixa japonesa. Um solo emocionante do dançarino japonês Ichiro Sugae que vai até a exaustão. Liddell profere suas referências à Bíblia, Shakespeare, Nietzsche, Ovídio, Georges Bataille. A representações pictóricas de todas as eras, Bosch, Botticelli, Goya, Velázquez, aos filmes do japonês Koji Wakamatsu,  etc. etc., numa intensidade intelectual  difícil de acompanhar.

Desde o início Angélica Liddell mostra tudo. Vai ao avesso. Oferecendo o mais íntimo, o mais secreto. Pernas afastadas numa versão ao vivo de A Origem do Mundo (L’Origine du monde, de 1866), quadro pintado pelo realista Gustave Courbet.

Em cinco horas se sucedem cenas de nudez, histórias de ficção e ritual de canibalismo, flagelos  com polvo e cheiro forte de maresia, suavidade e histeria, uma sessão exorcismo pelos ataques de 13 de novembro. Uma beleza extraordinária em meio a discurso frenético e obsessivo.

A peça está alicerçada sobre dois acontecimentos reais: O crime do canibal japonês que devorou sua vítima em nome do afeto e os atentados em Paris, em novembro de 2015.

Em 11 de junho de 1981 estudante Issei Sagawa assassinou e cortou em pedaços a namorada de 24 anos, após ter pedido para ela ler um poema. O japonês comeu parte do corpo de Renée Hartevelt e armazenou o resto no refrigerador. Ambos eram alunos da Sorbonne e ele reivindicou seu ato como uma obra artística. Angélica Liddell conheceu a história quando tinha 15 anos e ficou fascinada com a biografia do canibal japonês, culto e sensível.

A França de sua infância era o lugar da projeção da criação artística.

Liddel estava no Teatro Odeon, em Paris, quando os terroristas entraram no Bataclan. E a partir desse fato ela inventa uma ficção em que ela mesma seria a bruxa que atrai a morte e a responsável pela chacina, pois carrega consigo “uma maldição”.

No segundo ato ela desenvolve essa ideia, de que poderia ter evitado o massacre de 13 de novembro 2015, se tivesse cometido suicídio antes. E convoca o dilema dissecado por São Paulo na Carta aos Romanos: “Eu não entendo o que eu faço: eu não faço o que eu quero e eu faço o que eu odeio”.

Um ritual onde a beleza é o contraponto do sofrimento; e o arrebatamento da ópera barroca Dido and Æneas (Didon et Énée), do compositor inglês Henry Purcell.

Em três atos, ela busca transformar a violência real em violência poética. E conduz a plateia a mergulhar em zonas profundas dos instintos humanos mais primitivos.

No primeiro ato, é projetada em letras grandes a citação extraída do texto De La France, de Emile Cioran: “A França é o país da perfeição estreita […] símbolo poderoso para estrangeiros de desesperança ou os impetuosos de exclamação”.  Deve ter incomodado bastante nas sessões de Avignon, conceituado festival de teatro francês. Alguns devem ter recebido como desrespeito à história do país de Baudelaire, Rimbaud, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, Marcel Proust e da Revolução Francesa:

“Francia es el país de la perfección estrecha. No puede elevarse hasta las categorías supraculturales: hasta lo sublime, lo trágico, hasta la inmensidad estética. Por eso nunca ha dado un Shakespeare, un Bach o un Miguel Angel.(…) Las reflexiones de los moralistas franceses sobre el hombre son modestas comparadas con la visión del hombre en un Beethoven o un Dostoievski.(…) No conoce el equivalente del drama isabelino o del romanticismo alemán. Ajena como es a los símbolos potentes de la desesperanza o a los dones impetuosos de la exclamación- ¿dónde encontrar a una Santa Teresa entre las mujeres de sonrisa inteligente?- lleva su caída hasta el fin, conforme al ritmo propio de su evolución. (…) Francia se prepara para un final decente”. SOBRE FRANCIA. EMILE CIORÁN.

Ela exerce o direito de ser abusada com anfitriões, numa quebra a qualquer coisa que seja razoável.

“Sim, eu sei, a sinceridade é uma forma de barbárie.

Suas mentiras uma forma de refinamento.

Seus julgamentos uma forma de hipocrisia.

Sua correção, uma forma de intriga e ocultação”.

 Diz ela no terceiro ato, em socos certeiros aos “herdeiros perfeitos da baixeza de Rousseau”. Alguém escapou? Liddell não foi mais gentil com sua própria terra.

Há quem pense que ela quer chocar a todo o custo. Alguma violência ainda escandaliza?

Poesia, libido, desejo … tudo com muita violência

No primeiro monólogo Liddell faz um discurso em que revela seu desejo de “poder follar” no dia da morte do pai, da morte da mãe e o desejo de ser estuprada após sua própria morte.

E convoca o serial killer norte-americano Ted Bundy em palavras que despedaçam qualquer sonho burguês ou ideia de conciliação com a superfície dos bons sentimentos.

Eu sou o objeto sublime da sublime transgressão.

Eu sou o centro do problema da beleza.

Eu sou a embriaguez do assassino que o mundo da razão não pode suportar.

Onde os justos descobrem o que a lei os impede.

Onde os justos descobrem suas paixões.

Ted Bundy os ensinará tudo aquilo que a repressão nega e os livrará com seus atos de rigor que afoga o mundo.

Sim, eu sou a eleita pelo mal,

e minha cabeça cortada acompanhará a solidão

do homem verdadeiramente livre

para que todos vocês possam viver sem liberdade…

Ela não justifica os atos, expõe que faz parte da natureza humana, as zonas mais problemáticas, o ponto de vista criminal.

A história da humanidade é sórdida.

E a montagem segue em ritmo alucinante de discursos.  De composição cênica.  Garotas lindas e loiras e a se convulsionar, flagelar e simular sexo sozinhas ou com polvos. Uma agitação contínua de erotismo.

Em algum momento invade o som da banda hardcore norte-americana Hüsker Dü. Noutras cenas alusões ao Hentai (mangá japonês).

“Fair is foul and foul is fair” (Le beau est laid et le laid est beau), dizem as bruxas em Macbeth. Com essas palavras começa a carta de Angélica Liddell ao criminoso japonês Issei Sagawa, num desequilíbrio entre o fascínio com o mal e a dor.

Conectando com os instintos e os abismos profundos ela grita que todos e cada um é responsável pelo mal que assola o mundo em que vivemos. Mas sem falsos moralismos. Há empatia com assassinos porque eles pisaram em determinados territórios e nós não. Lembra de algum modo Artaud, o ritual, o sagrado. O bacanal místico.

Seu trabalho vai aos limites físico e mental, em uma composição exigente, calculada e estruturada ao extremo. A resistência e a exaustão do um intérprete japonês que realiza o mesmo movimento repetitivo segue passos do belga Jan Fabre, que já nos anos 1970 extraía sangue do próprio corpo e investia num teatro pleno de nudez e limites físicos para chegar ao êxtase.

Nem sempre bem compreendida, Liddell brinca com isso. Na sessão pediu para acender a luz da plateia e ver quantas pessoas ficaram até a terceiro parte.

Ela faz uma evocação das Metamorfoses de Ovídio. Mas sem antes deixar de dar uma nota sobre o futebol, o europeu e uma gracinha sobre o futebol brasileiro que levou uma surra de 7 a 1; sobre as medalhes da Olimpíada. Uma crítica feroz à valorização do mundo dos esportes em contraponto com o pouco reconhecimento da arte.

“A felicidade existe, mas ninguém merece”.

¿Cómo resolveréis vosotros el problema de la Belleza? ¿Dónde está la belleza? ¿Sabéis lo que dijo el filósofo? Amar y sucumbir: ambas cosas han ido unidas desde la eternidad. Voluntad de amor es estar dispuesto hasta la muerte. ¡Así es lo que os digo, cobardes!

“Tengo Poderes”, ela sussurra antes de deixar a cena em algum momento. Disso não temos a menor dúvida.

*Ivana Moura é jornalista, crítica cultural, pesquisadora de teatro, atriz e dramaturga. Mestra em Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Desde 2011 edita e produz conteúdo para o blog Satisfeita, Yolanda?, do qual é uma das idealizadoras. Participou de coberturas de festivais e mostras como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp (2014, 2015 e 2016), a Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo (2015), Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015) e  Bienal Internacional de Teatro da USP (2015). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.

**Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.

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[Crítica] Forças contrárias https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/forcas-contrarias/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/forcas-contrarias/#respond Thu, 15 Sep 2016 18:48:44 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=2250 Por Daniel Schenker

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No início de O que eu farei com esta espada? (Aproximação à lei e ao problema da beleza), espetáculo de Angélica Liddell, o público se depara com a projeção de um texto com a afirmação de que a França não dispõe de um movimento equivalente ao teatro elisabetano e ao romantismo alemão. Há, nessa frase, a exclusão do classicismo francês, proposital dentro de um trabalho que sugere, ao longo de cerca de quatro horas e meia de duração, uma oposição ao racionalismo, ao controle, à repressão.

Movimento do século XVII, o classicismo defendeu o resgate das regras que nortearam a tragédia grega como balizas fundamentais para a criação do artista. De acordo com os classicistas, o artista deveria obedecer normas previamente estipuladas, diferentemente do que havia feito William Shakespeare, o principal autor do período elisabetano, que propôs uma nova forma de escrita a partir da transgressão a leis como as unidades de tempo, lugar e ação e a divisão rígida entre tragédia e comédia. Seus textos não têm a contenção normalmente encontrada nas tragédias gregas (geralmente há muitos personagens e tramas paralelas e as histórias se desenrolam em espaços diversos) e apontam para uma fusão de gêneros.

Movimento nacionalista que surgiu na Alemanha do século XVIII, o pré-romantismo, norteado pela plataforma Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), foi marcado, ao contrário do classicismo, pela defesa da livre expressão da subjetividade do artista, pela louvação de sua genialidade. Segundo os pré-românticos, o artista deveria criar sem a obrigação de seguir à risca um modelo pré-estabelecido. Não por acaso, o movimento cultuou a dramaturgia de Shakespeare. O romantismo, mencionado na cartela inicial da encenação de Liddell, manteve as características, mas se firmou como um movimento mais urbano, menos dominado pelos arroubos da juventude.

Há citações a tragédias espalhadas pelo espetáculo de Liddell. São menções referentes tanto aos principais autores gregos – Ésquilo (Oréstia), Sófocles (Édipo Rei) e Eurípedes (Medeia) – quanto a Shakespeare – Macbeth. No que se refere às obras gregas, talvez a encenadora evoque-as com o intuito de destacar o contraste entre a forma justa, medida, controlada e os personagens que extravasam ao não conseguirem conter dentro de si impulsos proibidos. Há nessas tragédias uma oposição entre a lei coletiva e a determinação individual. O herói trágico não se curva diante do instituído. É como se obedecesse tão-somente à própria lei ou como se simplesmente não conseguisse agir de outra maneira dada a força com que determinada situação o atravessa

O que eu farei com esta espada? (Aproximação à lei e ao problema da beleza) se revela estruturado sob a tensão entre duas forças: de um lado, o controle, a precisão, a construção exata, o andamento suave, sem sobressaltos, os movimentos filigranados e calculados próprios do teatro oriental; do outro, os rompantes de agonia e êxtase de corpos ardentes, selvagens, animalizados, que imprimem energia orgiástica à cena, realçada por atuações ocasionalmente expandidas, derramadas, excessivas. O jogo de oposições é reforçado pelas imagens dos corpos, frequentemente desnudos, às vezes próximos de um modelo convencionado de beleza, às vezes distantes da forma idealizada e, nesse sentido, mais humanizados. Contudo, os dois polos não permanecem totalmente separados como se não se misturassem.

Liddell faz ainda menções contundentes ao corpo ferido, deformado, mutilado por atos de primitivo sadismo. Os limites do corpo são testados, a exemplo da cena que encerra o segundo ato, na qual um ator executa até a exaustão movimentos repetidos. Liddell deseja operar, dissecar o corpo, vê-lo por dentro. Por meio desse espetáculo, a encenadora realiza uma espécie de autoexame e expõe diante do público o lado obscuro que os indivíduos costumam esconder até de si mesmos. Evoca a realidade por meio de assassinatos – praticados por Issei Sagawa (o momento da descrição do ato de canibalismo praticado por ele, realizado pelo ator por meio de uma fala acelerada e dotada de musicalidade, é impactante), Ted Bundy e Jeffrey Dahmer – e revela estupor não pelos fatos em si, mas pelo modo amoral como se relaciona com os acontecimentos. A encenadora critica a postura politicamente correta, mas se penitencia por, tal qual uma personagem trágica, não conseguir sentir de forma mais equilibrada.

À medida que o espetáculo avança, Liddell despe o palco e dá cada vez mais vazão a um discurso transmitido em tom de pregação, o que gera desgaste, em especial na primeira metade do terceiro ato. Mas, apesar de bastante autocentrado (Liddell acumula texto, direção, atuação, cenografia e figurinos), O que eu farei com esta espada? (Aproximação à lei e ao problema da beleza) proporciona uma incômoda reflexão sobre ética.


Daniel Schenker é bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e da revista Preview. Escreve para os sites Teatrojornal (teatrojornal.com.br)Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. É membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio, Questão de Crítica e Reverência.

*Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.

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¿Que haré yo en 5 horas de espectáculo? https://mirada.sescsp.org.br/2016/digital/que-hare-yo-en-5-horas-de-espectaculo/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/digital/que-hare-yo-en-5-horas-de-espectaculo/#respond Thu, 15 Sep 2016 16:55:48 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=2176 Por Juliana Ramos – Sesc SP e Iran Giusti – Chicken or Pasta
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19h00  “Como será que eles vão relacionar uma história de canibalismo do japonês de 1981 à um ataque terrorista no Bataclan em 2015?”

19h10 “Meu Deus, 270 minutos é quase cinco horas né?”  

19h22  “O que diabos está acontecendo no palco?”

19h30 “Definitivamente a gente não tava pronto para isso?”

19h40 “Gente, pelo menos a gente aprendeu a falar palavrão em espanhol, francês e japonês.”

19h50 “Como é boa a Angélica Liddel, né?”

20h30 “Ok, agora tá fazendo sentido.”

20h40 “Não tô entendendo mais nada, mas até que tá bonito.”

20h50  “Ok, essa parte não era tão necessária assim. Ou era?”

21h  “Eba, intervalo.”

21h05 “Entendi a parte dos crimes violentos e crimes contra mulheres. Tô me sentindo um vencedor”

21h10 “Acho que nunca mais vou conseguir comer polvo na minha vida”

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21h15 “O que será que vai rolar agora?”

21h20 “Acho que a Angélica vai matar alguém no palco.”

21h45 “Definitivamente ela vai matar alguém no palco, tomara que não seja eu.”

21h55 “EU PRECISO DESSE TEXTO MARAVILHOSO QUE ELA FALOU AGORA”

22h00 “Onde será que ela acha essa galera linda que topa fazer essas loucuras todas?”

22h10 “Nossa que coisa linda, sério, acho que depois de duas horas você aceita o que vier pela frente”.

22h20 “Nossa dei uma pescada aqui”

22h30 “Opa, outro intervalo, arrasou, melhor timing.”

22h45 “Nossa amei a Angélica, tenho que lembrar de jogar no Google pra saber mais sobre ela.”

23h00 “Ah, agora as coisas tão fazendo mais sentido, mas eu acho que não vou dormir pensando nisso tudo.”

23h20 “CALMA O QUE TÁ ACONTECENDO? EU TINHA ENTENDIDO TUDO, PARA QUE ISSO AGORA?”

23h40 “Cara, o que diabos tá acontecendo, sério, ecaaaaaaa”

23h50 “Não tenho ideia do que acabou de acontecer, mas acho que eu gostei.”

0h00 “Ok, entrei em uma peça as 19h de um dia e sai no outro dia, como pode?”

0h01 “Sério, todo mundo precisa passar por essa experiência na vida.”

0h02 “Acho que não vou conseguir dormir nunca mais.”

0h05 “Ok, definitivamente não sei falar o que eu gostei ou não,mas TODO MUNDO PRECISA VER ESSA PEÇA”.

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“Que haré yo con esta espada? (Aproximación a la ley y al problema de la belleza)”, sobe a serra e estará em cartaz no Sesc Pinheiros nos dias 17 e 18/09.

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[Crítica] MIRe VEJA, Mi(g)Re (E) VEJA https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/mire-veja-migre-e-veja/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/mire-veja-migre-e-veja/#respond Tue, 13 Sep 2016 21:02:50 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=1960 Por Welington Andrade

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“… é teatral o que quer e pode ser teatro. Essa abordagem hegeliana e teleológica aceita, ao contrário da outra, o movimento e a contradição interna na história. Seja nostalgia de um modelo, sonho de uma essência, retraimento sobre uma especificidade, querer ou poder – desejo –, a teatralidade é falta de teatro. A modernidade concebe o teatro como falta, desejo e procura de teatro, em lugar de fazer do teatro uma arte definida e consumada”.

Geneviève Jolly e Muriel Plana, Léxico do drama moderno e contemporâneo.

Em Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna, Jonathan Crary convida à reflexão a respeito de como a arte e a cultura contemporâneas vem lidando com a categoria da percepção, desdobrada diretamente nos modos de produção da subjetividade. O professor de arte moderna e teoria da arte na Universidade de Columbia analisa as alterações significativas no regime de percepção criado pela sociedade industrial do século XIX cujos impactos se estendem aos dias de hoje. Examinando o fenômeno da urbanização acelerada vivido no Ottocento como uma conquista do capitalismo industrial, Crary detém-se sobre o problema da atenção e da subjetividade modernas a partir da relação que se estabelece entre percepção, sensibilidade, pesquisa científica e experiência estética. Os conceitos debatidos pelo autor podem migrar da esfera do século de Baudelaire e ser analisados à luz do início desse novo milênio, no qual a cultura do espetáculo tem caráter marcadamente disciplinador. “O que importa para o poder institucional, desde o final do século XIX”, afirma o autor, “é apenas que a percepção funcione de tal modo a garantir que um sujeito seja produtivo, controlável e previsível, que seja adaptável e capaz de integrar-se socialmente”.

A partir de tal enfoque, podemos afirmar que Birdie, do Agrupación Señor Serrano, da Espanha, constitui uma experiência teatral sui generis cuja grande qualidade é levar ao descondicionamento do mais hipertrofiado órgão da percepção humana – o olho – para que ele desconfie do que, a princípio, vê. Acreditamos tratar-se mesmo Birdie de uma criação teatral, uma vez que as palavras “espetáculo” e “espectador” provêm da forma latina “spectare”, que significa “olhar, observar atentamente, contemplar”, derivada, por sua vez, da forma grega “optiké”, cujo sentido é “a arte de ver, a ciência da visão”. Implicando a própria palavra “teatro” em grego a ideia de “lugar de onde se vê”, pode-se afirmar que a arte da cena, desde seu nascimento, elegeu o olho humano como sede da percepção do espectador. Assim, nada mais natural que um dos trabalhos que o grupo espanhol trouxe para este Mirada 2016 (o outro é Brickman Brando Bubble Boom – BBBB) tenha tido como ponto de partida uma imagem fotográfica. Captada em 2014 por José Palazón e rapidamente difundida na internet, ela retrata, em primeiro plano, um campo de golfe em Melilla (um enclave espanhol em território marroquino) e, em segundo plano, uma dezena de imigrantes africanos empoleirados sobre a cerca que separa aquela cidade do território do Marrocos. (À direita, é possível ver ainda um policial dirigindo-se ao grupo, anunciando uma abordagem violenta).

A leitura que se pode fazer desse instantâneo – convém lembrar, aqui mais do que nunca, que o étimo de “ler” aponta para a ideia de “colher com os olhos” – é a mais rugosa possível do ponto de vista semântico e está na base da nomeação do espetáculo. O vocábulo “birdie” pode significar em inglês tanto pássaro como um tipo de jogada no golfe. Dessa ambiguidade nascem então inúmeras outras ambivalências, estendidas ao nível da fluidez de sentidos – fruída, formalmente no espetáculo, pelo olho do espectador, que reconhece imagens de migrações humanas e animais, de aves migratórias e cenas fragmentadas de Os pássaros, de Hitchcock, editadas artesanalmente e exibidas, ora sob a narração de uma locutora que presta informações pontuais, ora ao som de uma trilha musical vibrante. Estabelecendo de modo lúdico algumas ilusões óticas dispostas a desautorizar o exercício da centralidade da visão (dependente de um olhar fixo, monocular), a experiência do Agrupación Señor Serrano nos propõe um curto-circuito perceptivo, ao nos oferecer para o (des)entendimento de nossa visão e audição uma complexa massa de estímulos, signos e materiais heterogêneos incapazes de serem reduzidos a um único sentido.

Afirma Patrice Pavis em seu Dicionário de teatro que “seja sob forma do corpo pensante, seja sob a do corpo no espírito”, “a percepção do espectador situa-se no lugar estratégico no qual ocorre a experiência teatral em sua complexidade e irredutibilidade”. Ao falar sobre migração do ponto de vista político, Birdie conduz também o espectador a um processo que podemos chamar de migração da subjetividade. Passagem de uma região ordinária, sensata, plagiária (na acepção de Roland Barthes) a um plano líquido, fluido, extraordinário – onde um sentido captado de modo subjetivo nunca fica satisfeito de estar. Pois bem, Birdie constitui um exercício de figuração em torno das ideias de migração de sentidos e de disciplina do olhar, por meio das quais os integrantes do Agrupación Señor Serrano inquirem a respeito de para onde miramos nosso olhar e o que de fato vemos.

*Welington Andrade é doutor em literatura brasileira pela USP, na área de dramaturgia. É professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero desde 1997, crítico de teatro da revista Cult e autor de um dos capítulos da História do teatro brasileiro: do modernismo às tendências contemporâneas (Editora Perspectiva/Edições Sesc-SP, 2013).

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[Crítica] There´s no place like home https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/theres-no-place-like-home/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/theres-no-place-like-home/#respond Mon, 12 Sep 2016 15:50:28 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=1822 29016968356_d4851886b1_k

Por Pollyanna Diniz, do blog Satisfeita, Yolanda?

No artigo intitulado Uma redefinição do teatro político, escrito por Patrice Pavis e publicado pela revista Sala Preta em 2013, o pesquisador propõe um questionamento cada vez mais recorrente no teatro realizado nesta década: “Como ilustrar na cena questões sobre a política ou a financeirização da economia, como esclarecer processos cada vez mais complexos que escapam, em grande parte, até mesmo aos especialistas? ”. Pavis continua sua argumentação afirmando que tanto o realismo quanto o naturalismo não necessariamente conseguem, no cenário atual, dar conta de lidar com esse real. E, mais adiante, esboça algumas possibilidades: “A escrita, mesmo a poética, por vezes é o melhor meio de acessar o real. A ficção, a artificialidade do jogo, a intensidade são necessárias para a descoberta de elementos do real e para a sua elucidação. O trabalho artístico e formal (mas não formalista) é uma etapa indispensável quando as formas e a dramaturgia esforçam-se para revelar conteúdos sócio-políticos ou psicológicos. A arte é, ou se torna, uma das melhores ferramentas para questionar a realidade e a política”.

O espetáculo Brickman Brando Bubble Boom – BBBB, do Agrupación Señor Serrano, dialoga perfeitamente com as ponderações trazidas à discussão por Patrice Pavis. Desde o título, já nos deparamos com o anúncio de um entrelaçamento que, na encenação, será verificado em vários níveis. Tanto nas narrativas, na linguagem, quanto nos dispositivos tecnológicos e nas técnicas utilizadas para a elaboração de um pensamento construído ao longo de toda a montagem. Talvez o seu ponto culminante, sua síntese, seja a cena em que os atores/performers/técnicos destroem uma enorme casa de isopor que eles haviam montado em cena.

O mote disparador para o espetáculo do grupo, fundado em 2006, em Barcelona, é a crise no setor imobiliário da Espanha. Desde 2008 – dado divulgado durante a própria montagem – foram mais de 500 mil despejos na Espanha. O estouro da bolha imobiliária, um processo bastante semelhante ao que aconteceu nos Estados Unidos, se desdobrou em diversos âmbitos no país. Como então trazer para o teatro essa temática, sem que seja feita uma reprodução documental ou uma imitação da realidade? Como, além disso, ampliar as possibilidades de apreensão desse real que se mostra tão complexo e brutal?

Em BBBB, o espectador é apresentado a duas histórias: a primeira delas, ficcional, conta a trajetória de sucesso de John Brickman, um dos maiores construtores da Inglaterra, que seria um dos criadores do sistema hipotecário internacional. Leia-se: a possibilidade de que todas as pessoas pudessem comprar suas casas, realizar um sonho, mesmo que a juros exorbitantes. Brickman nasce dentro de uma família muito pobre, que vivia numa casa de madeira, pintada de azul. E termina a vida infeliz, apesar de ter se tornado um milionário e morar numa grande mansão. A segunda narrativa é a de Marlon Brando que, desde cedo, teve problemas com os pais, um inadaptado, comprando mansões, mas sempre em busca de um lar de fato.

Apesar das histórias serem contadas dramaturgicamente de maneira linear, até dispostas em capítulos, os recursos utilizados pelo grupo se mostram criativos e engenhosos e se desdobram em várias escalas (inclusive de tamanho mesmo) diante do público. A narrativa de Brickman é trazida através da projeção de filmes da carreira de Brando, como se o ator interpretasse a vida do construtor; e também da manipulação ao vivo de objetos micro, como bonecos em miniatura na frente de maquetes de casa. A edição de todas essas imagens é feita ao vivo. Um dos integrantes do grupo está num dos cantos do palco, com todo o aparato, como computadores, para sincronizar as projeções. Além disso, no caso da história de Brickman, quase como justaposição, um dos atores faz a dublagem e imita os trejeitos de Brando nos filmes ao lado da projeção.

Durante a encenação, o público também vê projetadas outras estruturas narrativas que costuram e ampliam as possibilidades de diálogo e reverberação das narrativas. Por exemplo, imagens do programa Extreme Makeover, que reforma casas de pessoas pobres, com histórias de vida difíceis. Um modelo de exploração, aliás, reproduzido também nas televisões brasileiras. BBBB nos faz questionar o esforço do capitalismo em nos fazer acreditar no trabalho árduo, na compra de uma casa como necessidade, no engodo da meritocracia.

O Agrupación Señor Serrano se define como “una compañía de teatro que crea espectáculos originales basados en historias emergidas del mundo contemporâneo”. Em BBBB, assim como noutros espetáculos de grupos que têm a mesma premissa do espanhol, não há uma preocupação em dar conta de forma totalizante da amplitude e da complexidade da realidade, o que seria um objetivo inviável, mas de levantar questionamentos e propor olhares, trazendo à cena problematizações e possibilidades de apreensões. O espetáculo pode ser tomado como mais um exemplo significativo de como o teatro, uma arte de caráter coletivo, está estabelecendo relações com o político e o real, oferecendo ao espectador outras chaves de aproximação com esse mundo.


Pollyanna Diniz é jornalista, crítica e pesquisadora de teatro. Mestranda em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), há cinco anos edita e produz conteúdo para o blog Satisfeita, Yolanda? (www.satisfeitayolanda.com.br), do qual é uma das idealizadoras. Participou de coberturas de festivais e mostras como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (2014, 2015 e 2016), a Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo (2015) e a Bienal Internacional de Teatro da USP (2015). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.

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A conquista e a reconquista do espaço urbano https://mirada.sescsp.org.br/2016/digital/a-conquista-e-a-reconquista-do-espaco-urbano/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/digital/a-conquista-e-a-reconquista-do-espaco-urbano/#respond Sat, 10 Sep 2016 18:53:53 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=1541 bbbb

Por Mariana Krauss – Sesc Taubaté

Em fevereiro de 2016, uma audiência pública com grande mobilização popular retardou o andamento de um edital de privatização do entorno do Teat(r)o Oficina, localizado na região central de São Paulo. Um processo de licitação previa a concessão de uma área de 11 mil metros quadrados, em frente ao Teatro, para usufruto da corporação vencedora.

Este é um exemplo de como os teatros, enquanto espaços físicos, também são vítimas de processos de gentrificação. Com a chegada de novos ocupantes, as cidades se tornam palco de uma disputa pelo espaço em que justamente quem tem o menor poder econômico sai perdendo.

Em Barcelona, cidade de origem da Agrupación Señor Serrano, a questão imobiliária está no centro dos conflitos sociais da última década. Em 2008, com os altos investimentos na construção civil, desenrolou-se o fenômeno da bolha imobiliária, no qual muitas pessoas que tinham casas hipotecadas viram-se despejadas por não terem mais condições de pagar os valores inflacionados dos imóveis.

De acordo com Pau Palacios, criador da peça “Brickman Brando Bubble Boom”, atualmente a cidade vive um novo momento crítico, com a chegada de investidores estrangeiros que compram casas em Barcelona sem o intuito de morar nelas: “Os preços estão obrigando os moradores locais a ir viver na periferia. Ao mesmo tempo vemos no centro muitos apartamentos vazios, porque foram comprados apenas por investimento”.

Parte do movimento que acontece na cidade para tentar proteger a população deste processo envolve a arte: “Em nossas criações, procuramos identificar um problema e fazer uma abordagem que não seja documental, buscando uma metáfora. Nesse caso nos concentramos na necessidade humana de ter um lar, uma necessidade que é instintiva, seja de um pássaro que procura um ninho ou da pessoa que precisa de uma casa. E investigamos como essa necessidade humana se converteu em interesse de valor econômico”, conta Pau Palacios.

Em “Brickman Brando Bubble Boom”, os criadores abordam a figura de John Brickman, o inventor do sistema de hipotecas, que ironicamente nunca conseguiu ter uma casa para chamar de sua.

O espetáculo é um dos oito trabalhos espanhóis que integram esta edição do Mirada. A Agrupación Señor Serrano apresenta também a peça Birdie.

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