crítica – Sesc Mirada https://mirada.sescsp.org.br/2016 MIRADA - Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos Tue, 31 Jan 2017 21:44:28 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.5.8 [Crítica] Resistência em tempos de guerra https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/critica-resistencia-em-tempos-de-guerra/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/critica-resistencia-em-tempos-de-guerra/#respond Wed, 05 Oct 2016 20:33:37 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=2972 andante

Por Pollyanna Diniz, do Satisfeita, Yolanda?

O espetáculo Andante, da Markeliñe, companhia fundada em 1987 em Bilbao, provoca o espectador principalmente a partir da construção de imagens. Trabalhando com teatro de rua e objetos, os criadores propõem instalações cênicas, instigando o público a construir junto ao grupo a dramaturgia da peça, a partir das pistas que vão se desprendendo da cenografia. Como o espetáculo não é falado, torna-se ainda mais evidente a estruturação da montagem, de modo a estabelecer trocas semânticas com quem acompanha a trajetória do espetáculo.

Em Santos, o ponto de partida de Andante foi a Fonte do Sapo, na orla da cidade. Ao se depararem com os objetos – pares de sapato velhos, malas, telhas quebradas, um cenário de guerra (e assim começam as tentativas de estabelecer significados) -, e a identificação do festival, as pessoas logo se colocaram em roda aguardando o início da apresentação. Aquele, no entanto, não seria o único local da performance do Markeliñe, já que uma das características do trabalho é a tentativa de estabelecer uma espécie de cortejo, uma migração: atores e espectadores caminhando lado a lado até a próxima parada, onde uma nova cena se instaura e logo depois se dissipa.

Além da cenografia e da proposição de um trajeto, Andante encontra na música executada ao vivo por um dos performers uma das possibilidades de ampliar a potência da sua dramaturgia e da própria encenação. Se há apenas sugestões do que seriam essas cenas, das histórias trazidas a partir delas e, de fato, o espectador será o responsável por ir juntando as peças como um quebra-cabeças, mas sem encaixes únicos ou perfeitamente ajustados, a música é um elemento disparador importante. Principalmente no que diz respeito ao estímulo da sensibilidade, levando os espectadores a compartilharem juntos de um mesmo diapasão proporcionado pelos acordes, que podem ser tristes ou, por exemplo, mudar estados, instaurando diferentes momentos de cena.

Na primeira estação, o principal elemento cenográfico da montagem, o sapato, pode reportar narrativas diversas. No material do espetáculo, lemos que a maré talvez tenha devolvido aqueles calçados velhos, que já pertenceram a pessoas cujas histórias precisariam ser contadas. Os três personagens (um homem e duas mulheres) são interpretados por três atores usando máscaras, que chegam à primeira parada puxando uma carroça de madeira. Na cena, as máscaras dos atores deixam a mensagem ora de tristeza, ora de desamparo, mas também e talvez principalmente de inocência. Nesse primeiro ponto de encontro, o mais velho do grupo recolhe os sapatos, embora uma explosão sempre possa mudar o rumo das coisas. E então seguimos o trajeto.

Na segunda estação, uma delimitação de tempo e espaço circunscreve o espetáculo numa realidade mais palpável. Numa placa, lê-se: Santiago, Chile, 1973. Esse foi o ano do golpe de estado no Chile, que derrubou Salvador Allende e instaurou o regime ditatorial de Pinochet. Nesse cenário, um casamento é celebrado, utilizando-se dois pares de sapatos. De que forma a nossa vida cotidiana se vê afetada pela violência, pela guerra, pelos regimes de exceção que se estabelecem de tempos em tempos?

Na terceira estação, há uma reprodução de áudios sugerindo os discursos de ditadores, de generais; os sapatos estão carregam muita areia e a imagem da morte se faz mais presente. A morte de Franco é anunciada e, mesmo diante do quadro de devastação, uma flor pode permanecer viva, assim como a magia das mágicas bobas apresentadas pelos personagens. Na quarta parada, as palmas surgem da manipulação dos sapatos pelos espectadores.

Em Andante, a ocupação do espaço público resgata memórias e estabelece a vivência compartilhada de uma realidade simbólica, dialogando sobre tempos passados, mas também sobre o presente. Os objetos de cena trazem cargas que produzem novos campos, efeitos, ecos. Sejam eles de disputa de poder, de guerra, mas ainda e porque não, de construção de afetos em meio ao caos. Mesmo que a dramaturgia exiba em seu cerne a fragilidade de ser construída somente a partir de sugestões, principalmente de imagens, essa proposta do grupo talvez deva ser lida como resistência. De acreditar na sensibilidade e na organização de um pensamento que pode até não ser formal ou enquadrado em lógicas, mas respeita as subjetividades e possibilidades do espectador.

 

* Pollyanna Diniz é jornalista, crítica e pesquisadora de teatro. Mestranda em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), há cinco anos edita e produz conteúdo para o blog Satisfeita, Yolanda?, do qual é uma das idealizadoras. Participou de coberturas de festivais e mostras como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (2014, 2015 e 2016), a Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo (2015) e a Bienal Internacional de Teatro da USP (2015). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.

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[Crítica] Respirar não é um ato banal https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/critica-respirar-nao-e-um-ato-banal/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/critica-respirar-nao-e-um-ato-banal/#respond Fri, 23 Sep 2016 22:27:05 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=2942 Por Ivana Moura, do Blog Satisfeita, Yolanda?

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Respirar é uma façanha primordial. Ação elementar, para se permanecer vivo. Tem gente que não sabe respirar. Ou melhor, para ser mais precisa, não sabe respirar bem. E compromete o desempenho de funções vitais, com repercussão em todas as atividades. Afeta o seu estar no mundo. Acapela, espetáculo de dança da coreógrafa chilena Javiera Peón-Veiga, explora o potencial revolucionário desse procedimento: os efeitos sobre os estados de consciência, a percepção da realidade e as emoções ativadas. A peça foi apresentada em duas sessões para cerca 100 pessoas cada uma, durante o MIRADA, Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, em São Paulo.

Antes de entrar na instalação-pulmão, o público larga os sapatos e seus pertences do lado de fora. Depois se acomoda no chão da tenda branca. E o grupo de artistas, em pontos distintos, executa movimentos que vão do gesto mínimo ao exagero do corpo expandido. Puxam fios imaginários com as mãos e depois acionam o corpo todo.

Vestidos de branco, os bailarinos caminham ou correm de olhos fechados, respiram de forma exagerada, jogam entre si, e assinalam tempos e emoções. A plateia não é envolvida diretamente, mas está conectada pelo ar que aspira e expira.

Na sessão de domingo, pelo menos dez pessoas deixaram o local, cinco já nos primeiros 10 minutos de apresentação. Eu senti um pouco de claustrofobia e tive que controlar o medo da falta de ar, de estar naquele globo inflado, que busca simular um pulmão vivo, expandindo e diminuindo continuamente.

A produção modula a entrada de oxigênio, que na chegada do público está a “plenos pulmões”. Mas baixa a correnteza de ar em determinado momento para criar as condições da experiência.
Instantes de vida

O elenco se desloca pelo espaço utilizando a respiração como motor invisível da consciência e dos movimentos, para atingir vários estágios físicos. Em cenas fugazes, fiapos de narrativa são exibidas para a leitura do público. Convergem para as questões de sobrevivência individual, da autonomia da vida e de que cada um traça/ constrói um destino.

Os artistas criam imagens potentes. Mas são flashes. De corpos coléricos e efusivos. Entre sutilezas do fôlego e suas sonoridades. Sopros permanentes e dinâmicas breves. Imitações de bestialidade, construções de estruturas com os corpos e sucessão de selvageria beirando a violência.

A influência de Acapela vem das artes marciais orientais e técnicas de meditação, com forte dose de improvisação. A diretora Javiera Peón-Veiga também recorre aos estudos em Psicologia, Dança Contemporânea e Coreografia, que fez respectivamente no Chile, na Inglaterra e na França. Participam dessa criação e interpretação os bailarinos Macarena Campbell, Carolina Cifras, Angélica Vial, Ariel Hermosilla, Emilio Edwards, Claudio Muñoz Desenho Cênico Antonia Peón-Veiga e Claudia Yolín.
Entre mudanças de ritmos e diversas formas de fôlego há períodos de afago e de sufocamento. E ações para testar a capacidade pulmonar e o rendimento físico dos bailarinos.
Uma cena que se destaca é a que remete à performance de Marina Abramovic e Ulay: Death Self, de 1977. Nesse desempenho, os dois artistas se conectaram pela boca até esgotar o oxigênio disponível.

Diante da radicalidade de Death Self (Abramovic e Ulay caem inconscientes 17 minutos depois do início do programa), Acapela se mostra frágil. No espetáculo de Javiera Peón-Veiga os bailarinos aos pares realizam a ação, em poucos minutos de resistência. E a cena se mostra débil, quase como uma mera demonstração.
A matéria sonora e vibrátil atesta a fisicalidade em pulsação de Acapela; da leveza do desenho animado à bestialidade, que alude ao clichê dos nossos ancestrais na linha evolutiva de Charles Darwin. Além de outros efeitos de respiração, numa saturação errática do construto. Mas sem deixar grandes marcas no nosso corpo.

*Ivana Moura é jornalista, crítica cultural, pesquisadora de teatro, atriz e dramaturga. Mestra em Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Desde 2011 edita e produz conteúdo para o blog Satisfeita, Yolanda?, do qual é uma das idealizadoras. Participou de coberturas de festivais e mostras como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp (2014, 2015 e 2016), a Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo (2015), Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015) e Bienal Internacional de Teatro da USP (2015). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.

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[Crítica] Lutar contra a morte é lutar contra o esquecimento https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/lutar-contra-a-morte-e-lutar-contra-o-esquecimento/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/lutar-contra-a-morte-e-lutar-contra-o-esquecimento/#respond Sun, 18 Sep 2016 18:41:28 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=2875 viuvas_foto-matheus-jose-maria-6bx

Por Maria Eugênia de Menezes 
Teatrojornal – Leitura de Cena

Para conceber “Viúvas – Performance sobre a Ausência”, o grupo gaúcho “Oi Nóis Aqui Traveiz” apoiou-se em uma obra literária: o livro “Viudas” – lançando originalmente por Ariel Dorfman, em 1981. Mas a tentativa de compreender o que está em jogo permite ir além dos limites estritos do romance que lhe deu origem, convocando referências externas, sejam elas literárias ou históricas. A mitologia grega, as ditaduras militares que marcaram a América Latina, o narrador de Walter Benjamin, os relatos femininos dos horrores da guerra escritos por autoras como Herta Müller ou Svetlana Alexijevich. Muitas são as possibilidades de se aproximar do objeto polifônico que constitui “Viúvas”. Uma narrativa que abre portas para diálogos sobre o passado e sobre o presente. Sobre problemas que seguem sem solução, mas também sobre novas perguntas que não cessam de surgir.

Uma fábula condensa os conflitos a serem tratados. Em uma ilha, Sophia está sentada sobre uma pedra e observa as águas – parece estar de guarda, como se na expectativa por alguém que vai chegar. Enquanto espera, é surpreendida por um magnata e seus capangas, estrangeiros que vieram para se apropriar do povoado. Todos os homens, que ali antes viviam, desapareceram. Por se insurgirem contra algum tipo de nova ordem – que não chega a ser esmiuçada ao longo da peça – foram mortos e tiveram seus corpos subtraídos. Sophia é uma anciã que perdeu o pai, o marido, os filhos. Assim como ela, todas as outras mulheres que ali habitam sofreram perdas semelhantes. E o que impera, em meio a tantas ausências sem explicação, é o silêncio.

Interpretada pela atriz Tânia Farias, Sophia conduz essa história. É protagonista por ser aquela que tem a coragem de dizer. Questiona o estabelecido, clama pelo direito de prantear seus mortos e dar-lhes sepultura. Quer saber o que aconteceu, quer conhecer a verdade, quer contar o que passou. Não se conforma com o que está dado. Não aceita simplesmente esquecer. Consideram-na, por isso, louca. Se o louco hoje é o alienado, aquele que perdeu a conexão com a realidade, vale lembrar que não foi sempre essa a visão majoritária sobre a loucura. O iluminismo, a idade moderna e sua exaltação à racionalidade quiseram eliminar a insanidade do espaço público e segregá-la. Ao longo da história, porém, o louco também já foi visto como o detentor da verdade. (Idei a da qual a literatura e o teatro se apropriaram amplamente, como nos mostram os personagens de Shakespeare e Miguel de Cervantes).

Ao escrever “Viúvas”, Dorfman fazia uma evocação do que se passava à época no Chile. O argentino viveu 17 anos no país, chegou a integrar o governo de Salvador Allende e partiu para o exílio após o golpe que conduziu o general Pinochet ao poder. Para conseguir publicar o livro e escapar à censura, transpôs a trama para uma cidadezinha grega. Apenas anos depois, em 1991, uma adaptação do texto para o teatro – realizada em parceria com o dramaturgo norte-americanoTony Kushner – devolveu a história ao contexto sul-americano. Na versão do Ói Nóis, não existe um lugar determinado, nem uma época sugerida. Vestes coloridas indicam uma raiz latina, festiva. Mas se poderia imaginar um povoado qualquer onde haja opressão e disputa de poder. No pró logo do espetáculo, que ocorre dentro do barco que leva os espectadores até a pequena ilha em que se dará a encenação, um homem fala de seu exílio e da inutilidade de localizar qual é o seu país. “Quando alguém está longe de sua pátria e não pode conciliar o sono e até os cachorros não latem da mesma forma, foi então que eu pensei: “Minha pátria? Importa tanto? De verdade, eu tenho que nomeá-la?”, ele pergunta.

Mesmo abstendo-se de uma localização geográfica, a montagem da companhia gaúcha costura laços com a ditadura militar brasileira e sua herança nefasta de mortos e desaparecidos. Em Porto Alegre, onde estreou em 2011, “Viúvas” era encenada em uma ilha onde antes funcionava um presídio. Espaço que, durante os anos 1960 e 1970, abrigou presos políticos. A escolha se relaciona claramente aos princípios do “teatro de vivência” proposto pelo grupo, fortemente inspirado pelo norte-americano Living Theatre e suas tentativas de dissolver ao máximo os limites entre palco e plateia. Quem assiste toma o lugar de testemunha participativa, obrigada a se deslocar, a experimentar cheiros e percalços do local, a integrar-se em situações de festa e de trabalho.

Para que fosse apresentada dentro do Mirada, a obra foi transposta para uma ilha, sede do museu histórico Fortaleza de Santo Amaro da Barra Grande, fortificação construída em 1584. Por mais adequado que seja o espaço, porém, essa transposição não se deu sem algumas dificuldades. Fica nítida certa dificuldade do grupo em apropriar-se completamente do espaço – ao menos se comparada à apropriação que faziam do local ocupado em Porto Alegre. Uma falha no equipamento de luz também prejudicou a apresentação, comprometendo alguns de seus efeitos. Por último, também vale recordar que a duração do espetáculo foi reduzida, dando-lhe um tom ligeiro na resolução das cenas, sem o vagar necessário para envolver o espectador no que est&aa cute; em cena.

Do mesmo autor, o Ói Nóis já havia encenado “A Morte e a Donzela”. Mas cabe também fazer a ligação entre esse espetáculo e outros títulos recentes do seu repertório. Desde sua criação, em 1978, o coletivo se coloca em posição de repúdio aos valores dominantes. Isso se reflete seja em sua dinâmica de trabalho – que costuma renegar as hierarquias tradicionais que separam as posições de diretor, autor e ator – seja nas temáticas de suas obras. Seu mergulho nos mitos femininos, revisitando grandes personagens clássicas como Medeia, Cassandra e Antígona sob nova ótica, é exemplo eloqüente disso. Em “Medeia Vozes”, levado à cena em 2013, o grupo apoiava-se na leitura proposta pela alemã Crista Wolf, est udiosa que questiona a maneira como as tragédias gregas representam suas mulheres, sempre sob perspectiva masculina. Para relativizar a imagem de assassina dos próprios filhos que guardamos da tragédia de Eurípedes, Wolf traz Medeia como uma estrangeira estigmatizada e punida pelos poderosos da Grécia.

Os homens todos foram mortos, mas as mulheres puderam ficar. Em “Viúvas”, questiona-se também a ideia de um feminino naturalmente inerte. Como se todo o poder de contestação da ordem e da opressão fosse masculino. Como se uma mulher não representasse ameaça, mas apenas aceitação, resignação, obediência. Em uma das mais belas passagens da obra, a anciã fala a sua neta sobre a necessidade de contar histórias.

Cada narrativa sofre apropriações e adaptações de acordo com a época em que é contada. O que conhecemos são as histórias dos que venceram. Cabe ao narrador ir contra essas versões hegemônicas, assenhorar-se do poder de rememorar, ir contra o esquecimento. Sophia representa a memória: “Há histórias que pedem a gritos para ser contadas e, se não há palavras ainda para elas, cria-se pele para esperar o momento. O vento as leva, e a fumaça, e o rio, as palavras de cada história encontrarão o caminho até o lugar mais solitário e afastado, sempre que haja alguém que queira escutar”.

*Maria Eugênia de Menezes é jornalista e crítica teatral, atuou como repórter e crítica de teatro do Caderno 2, do jornal O Estado de S.Paulo, com experiência na cobertura de festivais no Brasil e no exterior. Também escreveu na Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas como o Circuito Cultural Paulista e membro do júri de prêmios como Prêmio Bravo! de Cultura, APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e Prêmio Governador do Estado de S.Paulo.

*Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.

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[Crítica] Hamlet – é preciso dizer de novo https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/hamlet-e-preciso-dizer-de-novo/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/hamlet-e-preciso-dizer-de-novo/#respond Sat, 17 Sep 2016 00:56:42 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=2272 Por Maria Eugênia de Menezes (site Teatrojornal – Leituras de Cena)

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Mais um Hamlet. E por que mais um? É verdade que cada nova versão – ou cada boa versão, ao menos – carrega em si uma leitura própria da obra tão conhecida. Também não faltam motivos para revisitar o texto mais montado de todos os tempos. E o ator Emanuel Aragão, que interpreta esse Hamlet – Processo de Revelação”, enumera diversos deles. Fala sobre o personagem como um precursor do existencialismo, de sua pioneira noção de individualidade dentro do teatro, de sua mensagem de livre arbítrio, da dificuldade de fazer escolhas. Mas nenhuma dessas razões, ele admite, resolve a questão: por que voltamos a Hamlet? Se ainda existe tanto por ser dito, por que seguir a repetir as palavras que todo mundo (ou uma parcela substancial das platéias de teatro) já escutou?

Os Irmãos Guimarães são os responsáveis pela direção desse “Processo de Revelação”. Criado em Brasília, o coletivo trafega, há mais de 20 anos, entre o teatro e as artes visuais e, continuamente, reafirma a preponderância da experiência sobre a representação. No lugar do teatro stricto sensu podem entrar outras formas de criação. Seja por meio de uma performance ou de uma instalação, o essencial é instar o público a descobrir novas possibilidades de olhar e de se relacionar com um objeto artístico.

Para concretizar tal ambição, Adriano e Fernando Guimarães já se detiveram sobre autores consagrados da literatura dramática – especialmente sobre Samuel Beckett, que tanto material lhes rendeu para montagens e investigações. Agora, voltam a Shakespeare. E o verbo voltar, neste caso, não foi utilizado para fazer referência a criações anteriores dos diretores, mas a uma imagem do bardo que a atual encenação reafirma. Como se o teatro shakespeariano se impusesse como um destino inescapável. Pode-se passar a vida a flanar por aí. Dedicar-se a investigar muitas coisas, a montar muitos autores. Mas o grande dramaturgo britânico paira sobre todos. E a hora do acerto de contas terminará por chegar.

No encontro entre esses criadores e a saga do príncipe da Dinamarca não se dá propriamente a montagem de uma peça. Espectadores irão presenciar e participar de certo ritual de dissecação. E o que devem encontrar não será propriamente a grande revelação sobre o título tão celebrado, a leitura definitiva. Mas uma sincera aproximação entre artista e personagem, entre autor e ator, entre tempos que podem coexistir ainda que separados por mais de 400 anos. Sinceridade soa como termo fora do lugar quando se está a falar de teatro. Nesse pacto de mentiras que se dá entre palco e platéia, contudo, há espaço para muitos arranjos. Naqueles mais felizes, cabe, inclusive, a verdade.

No lugar de uma encenação de Hamlet, acompanha-se a uma desconstrução, uma apresentação de questões e aspectos contidos no texto. Existe um quê de leitura comentada. Em diversas passagens, Emanuel Aragão discorre sobre as intenções e arranjos que cercam determinadas cenas e diálogos. Convida os espectadores a reagir e a participar da discussão. Há certa semelhança com o que seria a revelação de um processo de criação e ensaio. Aquele trabalho – geralmente ocultado após a obtenção da obra final  –  de se tentar compreender cada intenção, cada movimento, de encontrar a melhor tradução. Mas não é bem isso o que está em cena.  Não é só isso.

O intérprete compartilha episódios biográficos, como a morte do próprio pai. Chega a evocar situações fictícias em que as resoluções são adiadas ou levadas a cabo. Um homem que decide se matar e esmorece. Uma mulher que vai ao cemitério encontrar o túmulo da mãe que nunca chegou a conhecer. Entre essas pontas, está o seu estupor e perplexidade diante de Hamlet. Todos os personagens que o cercam serão apenas evocados – alguns, como é o caso de Ofélia, não merecem mais do que uma breve menção. Cenas, atos inteiros são negligenciados. Em contraponto, somos convidados a nos deter sobre determinadas passagens. As filigranas que poderiam vir a desvelar o tormento – e a grandeza – desse herói titubeante.

Diante da profusão de traduções disponíveis hoje, a exposição de mais uma não deveria fazer diferença. Nesse caso, faz. O ator, que também assina a dramaturgia, sublinha com a sua leitura alguns pontos capazes de transformar o espectador em seu cúmplice nessa busca.  O famoso solilóquio do “ser ou não ser” merece grifo em algumas palavras e sinais de pontuação. A indecisão entre calar as dores ou pegar em armas é examinada ponto a ponto, frase a frase.

Hamlet é magnânimo porque não sabe, porque, diante de cada situação, duvida. Seu desejo se dissolve. Suas certezas são frágeis. Os heróis, os líderes da história ocidental, construíram suas trajetórias a partir de crenças inabaláveis, persistindo na fé mesmo quando tudo e todos se impunham como obstáculos.  Hamlet é o oposto do sujeito de ação, do político, do guerreiro. É inconstante, é o poeta a perder-se em meio às inutilidades e às miudezas do mundo. Não é o grande homem, é o pequeno homem.

O horror da morte o paralisa, assim como a nós. Somos todos pequenos.  Preferimos suportar as misérias conhecidas ao mal desconhecido. E isso também já havia sido dito – e reafirmado, sublinhado – em tantas e tantas montagens que já subiram aos palcos do mundo. Mas é sempre bom ouvir de novo. Sempre bom que alguém tente dizer novamente. E falhe novamente. E falhe melhor.


Maria Eugênia de Menezes é jornalista e crítica teatral, atuou como repórter e crítica de teatro do Caderno 2, do jornal O Estado de S.Paulo, com experiência na cobertura de festivais no Brasil e no exterior. Também escreveu na Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas como o Circuito Cultural Paulista e membro do júri de prêmios como Prêmio Bravo! de Cultura, APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e Prêmio Governador do Estado de S.Paulo.

*Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.

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[Crítica] Conexões nebulosas https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/conexoes-nebulosas/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/conexoes-nebulosas/#respond Fri, 16 Sep 2016 20:32:23 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=2440 por Daniel Schenker

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Antígona é pouco mais que uma inspiração para a encenação cubana Antigonón, um Contingente Épico, dirigida por Carlos Díaz, com dramaturgia de Rogelio Orizondo. Há menções à tragédia de Sófocles – não só à trama centrada na mulher que, desobedecendo a ordem do rei Creonte, se mostra determinada a enterrar o irmão, Polinice, considerado traidor de guerra, como à Trilogia Tebana, também formada por Édipo Rei e Édipo em Colono, a exemplo da menção ao momento em que Antígona guia o pai, Édipo, já cego, após furar os próprios olhos. Mas, ao se voltarem para a história e a realidade de Cuba (ou, numa perspectiva mais abrangente, da pátria), Orizondo e Díaz adquirem voo independente em relação ao texto original.

Díaz evita reiterações. Os elementos que integram esse espetáculo da companhia El Público (a movimentação dos atores, as projeções, os figurinos) não se confirmam mutuamente. Ao invés de fornecer chaves seguras de transmissão de conteúdos, mensagens, o diretor procura estimular a autonomia de cada espectador na construção da própria interpretação sobre a cena. A decisão de não facilitar a apreciação pode ser vista como um mérito, como uma bem-vinda postura de resistência (termo que norteia as ações de Antígona). Mas, por outro lado, Antigonón, um Contingente Épico desponta como um trabalho um tanto cifrado, pouco acessível até mesmo ao espectador munido de referências. É difícil estabelecer conexão com a montagem, apesar da instigante construção da cena.

Uma apreciável secura atravessa o espetáculo. Essa característica fica evidenciada desde o início, quando os atores, nus, realizam uma partitura de movimentos (concebida por Xenia Cruz e Sandra Ramy), sem acompanhamento de texto ou de música. Carregam uns aos outros até formarem o que parece ser uma montanha de cadáveres, da qual alguém se desvencilha. A cenografia (de Robertiko Ramos) é bastante simples, composta por biombos cobertos por jornais amassados, com símbolos estampados. Há relativamente pouca trilha sonora (de Bárbara Llánes) ao longo do espetáculo, o que sinaliza corajosa aridez, mesmo quando uma atmosfera carnavalizada começa a despontar por meio dos figurinos (de Celia Ledón e Robertiko Ramos). São peças extravagantes, que, muitas vezes, não ocultam a nudez, usadas de forma sugestivamente invertida, o que acentua a ambiguidade sexual destacada ao longo da apresentação.

O corpo tem importância central dentro da dramaturgia. Orizondo aborda um corpo-pátria, esvaziado, devorado. Como resistir ao ter o corpo invadido? A resposta parece estar na presença das atrizes, que assumem a palavra durante boa parte do tempo por meio de um registro vocal firme, contundente, combativo, como Antígonas que reviram as tripas do irmão e não hesitam em fazer o que consideram fundamental, inadiável, independentemente da lei imposta pela autoridade. O palco é tomado por figuras endurecidas, desiludidas. Na contemporaneidade, como no passado remoto, não há espaço para o romantismo ou para a ilusão. Essas associações eventuais, porém, não  chegam a ganhar corpo nesse espetáculo instigante, mas excessivamente nebuloso.


*Daniel Schenker é Bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e da revista Preview. Escreve para os sites Teatrojornal (teatrojornal.com.br) e Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. É membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio, Questão de Crítica e Reverência.

*Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.

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[Crítica] Da lama ao caos https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/da-lama-ao-caos/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/da-lama-ao-caos/#respond Fri, 16 Sep 2016 20:18:26 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=2442 Por Pollyanna Diniz, do Satisfeita, Yolanda?

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No mangue não se paga casa, come-se caranguejo e anda-se quase nu. O mangue é um paraíso. Sem o cor-de-rosa e o azul do paraíso celeste, mas com as cores negras da lama, paraíso dos caranguejos. (O ciclo do caranguejo, Josué de Castro)

Caranguejo Overdrive, espetáculo da carioca Aquela Cia. de Teatro, é fruto da potência da reverberação até os dias de hoje das ideias do Manguebeat, surgido na capital pernambucana, Nordeste do Brasil, na década de 1990. No movimento que teve como propulsores nomes como Chico Science, Nação Zumbi, Fred Zero Quatro e Renato L, a música assumiu caráter político, de manifestação e denúncia social. As letras estavam cheias de referência ao Recife; em 1991, segundo uma pesquisa do Instituto de Washington, a quarta pior cidade do mundo para se viver. “É só uma cabeça equilibrada em cima do corpo / Escutando o som das vitrolas que vem dos mocambos / Entulhados à beira do Capibaribe / Na quarta pior cidade do mundo”, dizia Antene-se, de Chico Science.

O manifesto Caranguejos com cérebro, que saiu no encarte do icônico disco Da lama ao caos, de Chico Science e Nação Zumbi, cobrava a conta de uma ideia de progresso calcada no crescimento desenfreado: “A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex)cidade “maurícia” passou desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais. Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção de “progresso”, que elevou a cidade ao posto de “metrópole” do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade”.

A obra de Josué de Castro, autor de Geografia da fome, que serviu como inspiração para o Manguebeat (“Ô Josué, eu nunca vi tamanha desgraça / Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”, trecho de Da Lama ao Caos), também foi referencial para Pedro Kosovski, dramaturgo do espetáculo Caranguejo Overdrive. Cosme, um caranguejo que um dia foi homem, resgata em sua essência/trajetória as ideias do pernambucano.

Logo no início do espetáculo, o personagem nos transporta ao mesmo universo de que fala Josué de Castro em O ciclo do caranguejo: “Os mangues do Capibaribe são o paraíso do caranguejo. Se a terra foi feita pro homem, com tudo para bem servi-lo, também o mangue foi feito especialmente pro caranguejo. Tudo aí, é, foi ou está para ser caranguejo, inclusive o homem e a lama que vive nela”, escreveu Castro. Da boca de Cosme, ouvimos: “(…) há uma importante diferença entre mim e os homens, pois eu não morro de fome como eles, eu me farto com os restos que um dia foram eu, enquanto eles morrem de fome, pois não há caranguejos para tantos homens”.

O Manguebeat e Josué de Castro propiciam o arcabouço teórico e estético para que a Aquela Cia. de Teatro discuta a sua própria aldeia, o Rio de Janeiro; e, através dela, de alguma forma todas as grandes cidades do país. A metáfora da antena parabólica enterrada na lama continua fazendo sentido. No enredo, Cosme é um catador de caranguejo do Mangal de São Diogo, atual Cidade Nova, no Rio de Janeiro. Obrigado a servir ao exército brasileiro na Guerra do Paraguai (1864-1870), Cosme presencia todas as atrocidades de uma guerra que não lhe dizia respeito, incluindo as mortes, as pestes (como a cólera) e a tortura dos próprios aliados do governo brasileiro.

Ao voltar para o Rio de Janeiro, com o corpo e o psicológico afetados, o personagem não encontra mais o seu lugar de origem. No local, uma grande obra para aterrar o mangue e construir um canal ligando a zona portuária ao Centro do Rio de Janeiro. O texto é direto ao perguntar quem ganhou a concessão para as obras. Mas esse movimento dramatúrgico que se reflete na identificação direta que o público traça com os dias atuais, avança ainda mais quando uma puta paraguaia, interpretada pela atriz Carolina Virgüez, dispõe-se a ser guia turística de Cosme. Além de apresentar os motivos das mudanças na paisagem natural a Cosme, a puta paraguaia é a responsável por ministrar uma hilária aula de história do Brasil, desde os tempos de Getúlio Vargas até o impeachment. A atuação de Carolina Virgüez, aliás, em todas as suas personagens, é um dos pontos altos da montagem; enquanto os demais trazem uma realidade mais crua e dura, Carolina carrega o tom de ironia e humor na peça com muita perspicácia e talento.

Nesse percurso de volta ao mangue, ao estado de caranguejo, há espaço ainda para tratar da precarização do trabalho nos canteiros da construção civil. Cosme aceita cavar buracos em troca de um prato de comida. Vira escravo do sistema; afinal, não há mesmo caranguejos para aplacar a fome de tantos homens.

Além do texto, que extrapola temporalidades, indo da Guerra do Paraguai aos processos políticos mais recentes, as demais escolhas da direção de Marco André Nunes, com relação às atuações, cenografia e música, fazem de Caranguejo Overdrive uma obra potente em suas possibilidades político e estéticas. A começar pelos próprios corpos dos atores, principalmente a serviço desse imbricado duplo homem-caranguejo. O personagem principal perpassa todos os atores homens da montagem – Alex Nader, Eduardo Speroni, Fellipe Marques, Matheus Macena e Samuel Vieira, mas com registros de corpo e voz distintos. Impressiona o personagem homem-caranguejo de Matheus Macena, com fala entrecortada e gestos do animal. Ou a transformação de Fellipe Marques em caranguejo – por cerca de 20 minutos, o ator fica na posição de caranguejo.

Em se tratando de uma peça que tem suas raízes no Manguebeat, a música não poderia estar em segundo plano. Uma banda ao vivo, formada por Felipe Storino, Maurício Chiari e Samuel Vieira trazem a batida pesada, que nos lembra o som do próprio Chico Science e da Nação Zumbi. Na cenografia, uma caixa de areia iluminada por seis luminárias, uma gaiola, um aquário, um quadro branco. Poucos elementos de cena, reforçando a crueza temática.

Caranguejo Overdrive revisita as ideias do Manguebeat, mas não fica presa às suas fronteiras, incorporando outras camadas de leitura. A Aquela Cia. de Teatro está tratando dos nossos desejos políticos e afetivos, de identidade, de ocupação do espaço público, de projeto de cidade, de política. E, nesse emaranhado, da lama que nos paralisa, das nossas impossibilidades levadas à exaustação, da consciência de um percurso.

É uma montagem necessária ao Brasil, principalmente neste momento específico; mas imprescindível (assim como O avesso do claustro, da Cia do Tijolo, que conta a história de Dom Helder Câmara) ao Recife. A peça traça um percurso de resistência, assim como a cidade onde uma avenida cortando o mangue, a Via Mangue, demorou mais de dez anos para ficar pronta, custando a cifra de R$ 500 milhões. No bairro do Pina, por trás do shopping mais rico do Recife, da janela do carro seguindo por essa via, avistamos o pôr-do-sol e as palafitas erguidas sobre o rio, habitadas por homens-caranguejo.

Nas sessões do Mirada, por conta de uma lei municipal, os caranguejos vivos que são utilizados em cena tiveram que ser substituídos por pedras. Provavelmente, uma diferença significativa à encenação; por outro lado, que possamos traçar metáforas. Afinal, andar para frente não é sinônimo de progresso. “(…) andar para frente é necessariamente andar para trás, recomeçar onde o fim não se precipita”, diz Cosme. A grande questão talvez esteja na paralisia, na luta diária para não nos tornamos pedra.


*Pollyanna Diniz é jornalista, crítica e pesquisadora de teatro. Mestranda em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), há cinco anos edita e produz conteúdo para o blog Satisfeita, Yolanda?, do qual é uma das idealizadoras. Participou de coberturas de festivais e mostras como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (2014, 2015 e 2016), a Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo (2015) e a Bienal Internacional de Teatro da USP (2015). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.

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que-hare-critica

O caráter radical do teatro de Angélica Liddell se abre em todo seu esplendor e crueldade no espetáculo ¿Qué Haré Yo Con Esta Espada?, apresentado no MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos.  Essa mulher de aparência frágil investe como uma metralhadora a cuspir verdades difíceis de engolir, a articular e subverter conceitos para remeter ao subtítulo da montagem (aproximación a la Ley y al problema de la Belleza).

Os fundamentos monstruosos do ser humano são perfilhados, sulcados em papéis de torturador e vítima em cenas perturbadoras, extremas. Os impulsos mais perigosos são cavoucados numa busca pela beleza e amor. Da ferocidade do amor quando se sente ameaçado. “O horror precisa do nosso amor”, escreveu ela. Ou, seguindo Nietzsche sobre a liberdade oferecida pela natureza e não pela lei.

A artista catalã trafega por territórios complexos, em pulsações de raiva e indignação, violência física e verbal.  Sequências de dança surpreendentes, trechos de óperas, de heavy metal, meninas louras nuas se contorcendo violentamente. Três japoneses (incluindo um dançarino arrebatador) que devoram peixe cru e uma gueixa japonesa. Um solo emocionante do dançarino japonês Ichiro Sugae que vai até a exaustão. Liddell profere suas referências à Bíblia, Shakespeare, Nietzsche, Ovídio, Georges Bataille. A representações pictóricas de todas as eras, Bosch, Botticelli, Goya, Velázquez, aos filmes do japonês Koji Wakamatsu,  etc. etc., numa intensidade intelectual  difícil de acompanhar.

Desde o início Angélica Liddell mostra tudo. Vai ao avesso. Oferecendo o mais íntimo, o mais secreto. Pernas afastadas numa versão ao vivo de A Origem do Mundo (L’Origine du monde, de 1866), quadro pintado pelo realista Gustave Courbet.

Em cinco horas se sucedem cenas de nudez, histórias de ficção e ritual de canibalismo, flagelos  com polvo e cheiro forte de maresia, suavidade e histeria, uma sessão exorcismo pelos ataques de 13 de novembro. Uma beleza extraordinária em meio a discurso frenético e obsessivo.

A peça está alicerçada sobre dois acontecimentos reais: O crime do canibal japonês que devorou sua vítima em nome do afeto e os atentados em Paris, em novembro de 2015.

Em 11 de junho de 1981 estudante Issei Sagawa assassinou e cortou em pedaços a namorada de 24 anos, após ter pedido para ela ler um poema. O japonês comeu parte do corpo de Renée Hartevelt e armazenou o resto no refrigerador. Ambos eram alunos da Sorbonne e ele reivindicou seu ato como uma obra artística. Angélica Liddell conheceu a história quando tinha 15 anos e ficou fascinada com a biografia do canibal japonês, culto e sensível.

A França de sua infância era o lugar da projeção da criação artística.

Liddel estava no Teatro Odeon, em Paris, quando os terroristas entraram no Bataclan. E a partir desse fato ela inventa uma ficção em que ela mesma seria a bruxa que atrai a morte e a responsável pela chacina, pois carrega consigo “uma maldição”.

No segundo ato ela desenvolve essa ideia, de que poderia ter evitado o massacre de 13 de novembro 2015, se tivesse cometido suicídio antes. E convoca o dilema dissecado por São Paulo na Carta aos Romanos: “Eu não entendo o que eu faço: eu não faço o que eu quero e eu faço o que eu odeio”.

Um ritual onde a beleza é o contraponto do sofrimento; e o arrebatamento da ópera barroca Dido and Æneas (Didon et Énée), do compositor inglês Henry Purcell.

Em três atos, ela busca transformar a violência real em violência poética. E conduz a plateia a mergulhar em zonas profundas dos instintos humanos mais primitivos.

No primeiro ato, é projetada em letras grandes a citação extraída do texto De La France, de Emile Cioran: “A França é o país da perfeição estreita […] símbolo poderoso para estrangeiros de desesperança ou os impetuosos de exclamação”.  Deve ter incomodado bastante nas sessões de Avignon, conceituado festival de teatro francês. Alguns devem ter recebido como desrespeito à história do país de Baudelaire, Rimbaud, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, Marcel Proust e da Revolução Francesa:

“Francia es el país de la perfección estrecha. No puede elevarse hasta las categorías supraculturales: hasta lo sublime, lo trágico, hasta la inmensidad estética. Por eso nunca ha dado un Shakespeare, un Bach o un Miguel Angel.(…) Las reflexiones de los moralistas franceses sobre el hombre son modestas comparadas con la visión del hombre en un Beethoven o un Dostoievski.(…) No conoce el equivalente del drama isabelino o del romanticismo alemán. Ajena como es a los símbolos potentes de la desesperanza o a los dones impetuosos de la exclamación- ¿dónde encontrar a una Santa Teresa entre las mujeres de sonrisa inteligente?- lleva su caída hasta el fin, conforme al ritmo propio de su evolución. (…) Francia se prepara para un final decente”. SOBRE FRANCIA. EMILE CIORÁN.

Ela exerce o direito de ser abusada com anfitriões, numa quebra a qualquer coisa que seja razoável.

“Sim, eu sei, a sinceridade é uma forma de barbárie.

Suas mentiras uma forma de refinamento.

Seus julgamentos uma forma de hipocrisia.

Sua correção, uma forma de intriga e ocultação”.

 Diz ela no terceiro ato, em socos certeiros aos “herdeiros perfeitos da baixeza de Rousseau”. Alguém escapou? Liddell não foi mais gentil com sua própria terra.

Há quem pense que ela quer chocar a todo o custo. Alguma violência ainda escandaliza?

Poesia, libido, desejo … tudo com muita violência

No primeiro monólogo Liddell faz um discurso em que revela seu desejo de “poder follar” no dia da morte do pai, da morte da mãe e o desejo de ser estuprada após sua própria morte.

E convoca o serial killer norte-americano Ted Bundy em palavras que despedaçam qualquer sonho burguês ou ideia de conciliação com a superfície dos bons sentimentos.

Eu sou o objeto sublime da sublime transgressão.

Eu sou o centro do problema da beleza.

Eu sou a embriaguez do assassino que o mundo da razão não pode suportar.

Onde os justos descobrem o que a lei os impede.

Onde os justos descobrem suas paixões.

Ted Bundy os ensinará tudo aquilo que a repressão nega e os livrará com seus atos de rigor que afoga o mundo.

Sim, eu sou a eleita pelo mal,

e minha cabeça cortada acompanhará a solidão

do homem verdadeiramente livre

para que todos vocês possam viver sem liberdade…

Ela não justifica os atos, expõe que faz parte da natureza humana, as zonas mais problemáticas, o ponto de vista criminal.

A história da humanidade é sórdida.

E a montagem segue em ritmo alucinante de discursos.  De composição cênica.  Garotas lindas e loiras e a se convulsionar, flagelar e simular sexo sozinhas ou com polvos. Uma agitação contínua de erotismo.

Em algum momento invade o som da banda hardcore norte-americana Hüsker Dü. Noutras cenas alusões ao Hentai (mangá japonês).

“Fair is foul and foul is fair” (Le beau est laid et le laid est beau), dizem as bruxas em Macbeth. Com essas palavras começa a carta de Angélica Liddell ao criminoso japonês Issei Sagawa, num desequilíbrio entre o fascínio com o mal e a dor.

Conectando com os instintos e os abismos profundos ela grita que todos e cada um é responsável pelo mal que assola o mundo em que vivemos. Mas sem falsos moralismos. Há empatia com assassinos porque eles pisaram em determinados territórios e nós não. Lembra de algum modo Artaud, o ritual, o sagrado. O bacanal místico.

Seu trabalho vai aos limites físico e mental, em uma composição exigente, calculada e estruturada ao extremo. A resistência e a exaustão do um intérprete japonês que realiza o mesmo movimento repetitivo segue passos do belga Jan Fabre, que já nos anos 1970 extraía sangue do próprio corpo e investia num teatro pleno de nudez e limites físicos para chegar ao êxtase.

Nem sempre bem compreendida, Liddell brinca com isso. Na sessão pediu para acender a luz da plateia e ver quantas pessoas ficaram até a terceiro parte.

Ela faz uma evocação das Metamorfoses de Ovídio. Mas sem antes deixar de dar uma nota sobre o futebol, o europeu e uma gracinha sobre o futebol brasileiro que levou uma surra de 7 a 1; sobre as medalhes da Olimpíada. Uma crítica feroz à valorização do mundo dos esportes em contraponto com o pouco reconhecimento da arte.

“A felicidade existe, mas ninguém merece”.

¿Cómo resolveréis vosotros el problema de la Belleza? ¿Dónde está la belleza? ¿Sabéis lo que dijo el filósofo? Amar y sucumbir: ambas cosas han ido unidas desde la eternidad. Voluntad de amor es estar dispuesto hasta la muerte. ¡Así es lo que os digo, cobardes!

“Tengo Poderes”, ela sussurra antes de deixar a cena em algum momento. Disso não temos a menor dúvida.

*Ivana Moura é jornalista, crítica cultural, pesquisadora de teatro, atriz e dramaturga. Mestra em Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Desde 2011 edita e produz conteúdo para o blog Satisfeita, Yolanda?, do qual é uma das idealizadoras. Participou de coberturas de festivais e mostras como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp (2014, 2015 e 2016), a Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo (2015), Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015) e  Bienal Internacional de Teatro da USP (2015). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.

**Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.

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acomedialatinoamericana_fotospatriciacividanes_santos1_01

“Se esse tempo latino-americano nos parece premente, escandaloso, contraditório, como em época de revolução permanente, assim também se nos apresentará o panorama da criação artística; algumas condições vêm de outrora, mas recebem um matiz próprio da época; outras são geradas nos problemas culturais do momento; e há ainda as que apontam para o futuro imediato”. Ángel Rama, Dez problemas para o romancista latino-americano.

Apresentada neste Mirada 2016 como um trabalho ainda em processo, A comédia latino-americana, segunda parte do díptico A tragédia latino-americana (cuja estreia se deu na MIT 2015) e A comédia latino-americana – com direção de Felipe Hirsch e atuação do coletivo Ultralíricos (formado, aqui, por Caco Ciocler, Caio Blat, Camila Márdila, Georgette Fadel, Javier Drolas, Julia Lemmertz, Magali Biff e Rodrigo Bolzan) – reúne uma série de textos da literatura em língua portuguesa e em língua espanhola do continente americano que tematizam “a violência, o binarismo político e ideológico, o sistema elitista, a não valorização da própria cultura, a falta de consciência histórica, entre outros assuntos tomado como característicos da América Latina”, segundo consta no catálogo completo do festival.

A criação mostrada ao público no Teatro Coliseu de Santos na última terça-feira, dia 13 de setembro, constitui uma espécie de “girafa de três pernas”, expressão que o dramaturgo irlandês Samuel Beckett (cuja figura está estranha e entranhadamente implícita na segunda parte do espetáculo) utilizou para tratar do processo de construção de Fim de partida, quando a peça ainda se dividia em dois atos, posteriormente sintetizados em um. O desequilíbrio estrutural da versão de A comédia latino-americana apresentada no dia 13 (no dia anterior, segundo quem esteve presente à sessão, outra foi a conformação dramatúrgica concretizada em cena) configurou-se certamente como um dos elementos que mais chamaram a atenção.

A primeira parte da apresentação evocou certo espírito do teatro de revista, ao mostrar – como se fizessem parte de um todo ecleticamente constituído – seis quadros de naturezas diversas, que dialogam em maior ou menor medida com a trilha sonora original composta por Arthur de Faria, executada ao vivo pelo próprio músico à frente da Ultralíricos Arkestra, cujos integrantes estão reunidos à esquerda do palco. No primeiro deles, que tem início no plano da plateia, Rodrigo Bolzan e Magali Biff encarnam um casal em litígio pelo fato de ele gostar de teatro, e ela somente de telenovelas. A rigor, tal mote se desdobra em uma discussão a respeito da natureza da representação teatral e de sua recepção por parte do espectador – que a dupla de intérpretes, esbanjando talento, aliás, entabula tangida pela máscara do patético. Segue-se um número musical em que todos os atores, dispostos em formação coral e tendo sob suas cabeças chapéus bastante engraçados, cantam uma canção que trata do neoliberalismo. A cada um deles compete o protagonismo de estrofes especialmente entoadas. O quadro é longo (a extensiva duração de todos eles, aliás, constitui, tudo leva a crer, um elemento intencional na gramática do trabalho) e alia a seriedade subjacente ao tema à hilaridade controlada com a qual ele é tratado.  Posteriormente, uma alentada declaração em off chega aos ouvidos do espectador sob a forma de um manifesto. O que ocorre depois é o desmonte da descomunal parede de tijolos de isopor erguida como fundo de cena até a primeira metade do palco (a direção de arte do projeto é de Daniela Thomas e Felipe Tassara), realizado em conjunto por todos os atores com a ajuda de integrantes da equipe técnica. Sobre os escombros tem início o próximo quadro, no qual Caco Ciocler, transitando entre os registros cômico-popular e grotesco, encarna um Pero Vaz de Caminha pós-moderno, cujo discurso alia violência, desfaçatez e escatologia. Encerra essa primeira parte uma canção apresentada por Georgette Fadel.

Eis que, após o intervalo, o espírito de revista da primeira parte se dilui e A comédia latino-americana faz da narrativa La libertad total, do escritor argentino Pablo Katchadjian, seu mote. Tendo seus textos em mãos para serem lidos, mas exibindo excelente domínio no exercício de inflexões e intenções, Julia Lemmertz e Georgette Fadel dão início a um jogo de desabrida retórica e imaginação humorísticas, marcas do trabalho desse escritor ainda desconhecido entre nós, cuja filiação literária remonta ao Beckett de Esperando Godot e Fim de partida. Todos os demais atores pouco a pouco entram em cena, demonstrando a mesma prontidão para os jogos dialéticos de Katchadjian.

A materialização dessa loquacidade lúdica sob a forma de espetáculo teatral é bastante desafiadora e aponta para o tom de provocação geral que preside a essa comédia latino-americana capitaneada por Felipe Hirsch. Ainda que anunciando querer somente dar “um recorte” da literatura do continente, o espetáculo pode – conscientemente ou não – vir a apostar no conceito de comarca desenvolvido por Ángel Rama, por meio do qual o crítico uruguaio considerou possível identificar a “homogeneidade de elementos naturais, étnicos e culturais que convergem em formas similares de criação artística”. As questões decorrentes da inserção desses escritores em suas comarcas e de sua participação em um espetáculo teatral tecido pelos fios da transculturação podem fazer do projeto um ótimo espécime por meio do qual se discuta o complexo problema da liberdade de criação no teatro ou simplesmente se desfrute dele.

*Welington Andrade é doutor em literatura brasileira pela USP, na área de dramaturgia. É professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero desde 1997, crítico de teatro da revista Cult e autor de um dos capítulos da História do teatro brasileiro: do modernismo às tendências contemporâneas (Editora Perspectiva/Edições Sesc-SP, 2013).

*Leia mais sobre o Mirada 2016 aqui.

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[Crítica] Dom da liberdade https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/dom-da-liberdade/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/dom-da-liberdade/#respond Thu, 15 Sep 2016 20:21:57 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=2260 Por Ivana Moura

avesso

Bateu um infrequente medo de avião. Mas avistei um homem-santo que apanhava a mesma aeronave e respirei aliviada. Não vai ser desta vez que esse aparelho voador vai cair, pensei no íntimo. Isso foi no início dos anos 1990, numa das minhas primeiras viagens ao Festival de Teatro de Curitiba, saindo do Recife. Dom Helder Camara (1909-1999) dissipou o receio incomum que se apossou de mim. Sua presença naquele ambiente devolveu-me uma paz temporária, mas profunda. E olhe que, sinceramente, eu nem era fã fervorosa do Arcebispo Emérito de Olinda e Recife.

Essa passagem emergiu dos sótãos da memória durante a apresentação do espetáculo O Avesso do Claustro, da Cia do Tijolo de São Paulo, durante o Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos. A encenação incendiou-me de sentimentos nobres. Parecia que boiava em águas mornas, meu coração quente, meus olhos molhados e uma certeza que alguns homens são realmente imprescindíveis para a humanidade, seu transcurso pela Terra deixam marcas de amor… São poucos. Dom Helder Camara é um deles.

Nesses tempos tão obscuros e obtusos parece da maior importância ampliar na escala cênica a trajetória desse bispo mignon na estatura física e gigante em coragem e devoção aos homens. Um santo rebelde como se pauta o grupo para construção dessa narrativa repleta de epifanias.

O espetáculo é quase perfeito em seu organismo de compartilhamentos de afetos e desejos de dias melhores, de tempos melhores. De comunhão com sopa, vinho e guizos. Repleta de ânimos, a encenação traça paralelos da luta do Dom Helder durante o regime militar brasileiro e essa outra Idade Média que encaramos sem tantos eixos de sustentação.

Esse bispo vermelho tinha um jeito muito peculiar de resistir. De criar aliados, de defender os mais pobres. De gritar por justiça, democracia e direitos humanos pelo mundo afora sem levantar a voz. De desafiar autoridades religiosas e profanas.

A abertura do espetáculo é puro deslumbramento. E isso vai se multiplicando ao longo de mais de duas horas de apresentação. Mas esse começo já agarra pela emoção. Com uma fina cortina, que separa palco e plateia, ainda fechada, atores-cantores e os músicos dirigidos por William Guedes, com imensas saias e bustos nus, em pé sobre pequenos bancos tocam e cantam a versão de câmara da arrepiante Missa Luba –– baseada em canções tradicionais do Congo.

Essa Missa Luba foi empregada por Pier Paolo Pasolini em O Evangelho Segundo Mateus. Trechos do filme são projetados no cenário, em outro momento, como comentários do religioso sobre as figuras bíblicas e o desempenho dos atores.

Músicas litúrgicas em ritmo de maracatu fazem parte da trilha sonora original de Caique Botkay e Jonathan Silva, que são entoadas com alegria. Essa sonoridade faz trânsitos entre cenas, preenche espaços, cria climas, subverte intenções. É uma personagem estratégica na montagem.

Fé e resistência política

Na primeira fala do personagem Dom Helder da peça ele argumenta: “Afirmo para os senhores que ainda hoje, nas periferias do Brasil, Cristo se chama Zé Antônio, Amarildos, Claudias, Beneditas, Lampiões e Josés”. Pessoas que sofreram algum tipo de abuso de autoridade e agressão policial; desaparecidas, mortas ou que foram vítimas de violência. Isso já traduz a temperatura do espetáculo. Seu teor político toma posição a favor da justiça, da liberdade, da igualdade, da fraternidade, da repartição das riquezas, da luta contra qualquer barbárie, como ocorreu com seu personagem principal.

O teatro para a Cia do Tijolo assume papel engajado com seu tempo, com as causas urgentes. O Dom Helder do grupo se ergue contra os fundamentalismos disfarçados e ou desavergonhadamente ostentados por igrejas mercenárias. Se opõe às funções retrógradas da chamada BBB, a bancada da Bíblia, do Boi e da Bala. Combate a manipulação de alguns segmentos que exploram Deus. E isso é brilhantemente apresentado no discurso levado ao palco, que elenca os adesivos de carro que sustentam em seus dizeres “Presente de Deus”. À vergonhosa sessão no Congresso em que o nome de Deus foi citado para justificar sentimentos e atos mais torpes.

O religioso é interpretado de forma visceral por Dinho Lima Flor, que divide a direção com Rodrigo Mercadante. Frei Betto assina a orientação teórica do espetáculo. Os motes temporais são habilmente entrelaçados. Frente a esse personagem biográfico são colocadas três figuras fictícias, que ouvem seus poemas e histórias, dialogam com ele, e questionam as escolhas do protagonista. Suas perguntas norteiam as ações. Um pesquisador à procura de Dom Helder no Recife; uma mulher que amarga um duro cotidiano em São Paulo e uma cozinheira do Rio de Janeiro, que vive aos pés do Cristo Redentor.

Rodrigo Mercadante faz o jornalista que, na visita ao Recife. Lilian de Lima atua como a moradora que nas caminhadas noturnas reflete sobre a exclusão. Karen Menatti faz o papel da mestre-cuca habitante da Cruzada São Sebastião, no Rio e interroga a existência de Deus. Flávio Barollo circula pelo palco a projetar imagens em lugares surpreendentes. Os músicos Aloísio Oliver, Maurício Damasceno, Leandro Goulart e William Guedes, completam o elenco,

Transbordamento

O excesso narrativo da dramaturgia coletiva transborda ao buscar dar conta dessa vida tão rica e da relevância das conexões com o mundo atual. Em 170 minutos, a montagem avança como missa profana, com passos de calvário e paradas nas estações de trem. Até chegar ao apoteótico fechamento de Carnaval, que congrega bonecos gigantes de Dom Helder, Paulo Freire, Garcia Lorca e Patativa do Assaré, personalidades que estão no repertório de peças da Cia. do Tijolo: Ledores no Breu, Cantata para um Bastidor de Utopias e Concerto de Ispinho e Fulô.

A vida de Câmara é exposta de forma não linear.  Seus trejeitos dramáticos são incorporados por Dinho. Suas mudanças de opções traduzem a carne viva.  “Em cada um de nós dorme um fascista e às vezes ele nunca desperta. Às vezes, porém, ele desperta sim.” Na juventude Dom Helder foi um entusiasta do movimento integralista, os camisas-verdes do fascismo brasileiro organizado. Esse grupo enganou muito jovens com um discurso dúbio que o religioso soube enxergar mais tarde, quando se tornou-se um socialista e ganhou a alcunha de “bispo vermelho”.

Apesar do dilúvio de informações e detalhes sobre a existência do clérigo, há muito mais para ser explorado sobre esse poeta da fé, que meditava com a lógica da poesia e gostava de promover reuniões com artistas, saraus e debates abertos em pleno vigor da Ditadura. É que em 90 anos de vida ele foi extremamente ativo nos campos político, artístico e espiritual. Ele concebeu um banco para emprestar dinheiro aos pobres nos anos 1960, por exemplo. E organizou a construção de apartamentos para favelados no bairro carioca do Leblon, transformada numa cena muito potente do espetáculo.

Os relatos se seguem em cenas fortes que embaralham narrativas. Como o encontro de Dom Helder e um Papa e a crítica do Arcebispo de Olinda e Recife à opulência do papado. O assassinato do Padre Henrique como recado e condenação ao próprio Camara. A tortura de Frei Tito, que desencadeou à projeção sem trégua do seu algoz até a morte. Ou o da prostituta que perguntou ao Dom se era pecado se oferecer em sacrifício a um prisioneiro todos os anos da Sexta Santa e obteve como resposta que não era pecado.

Chama incandescente

Aquela criatura franzina amedrontava os donos do poder. Sua relação com a imprensa é explorada de forma espirituosa em várias estações: do vislumbrar do encontro com São Pedro, em que Dom Helder aguarda a imprensa, ou seu pedido para que a imprensa não esteja presente no encontro com João Goulart, quando o bispo previne sobre o golpe, e o vazamento de uma foto que se torna o estopim para prendê-lo.

Figura embaraçosa aos militares durante a ditadura, o espetáculo recupera os discursos do sacerdote que denunciou as torturas praticadas por militares brasileiros para mais de dez mil pessoas na França. Isso desencadeou a proibição de seu nome – de forma positiva ou negativa – pela Ditadura Civil-Militar por qualquer meio de comunicação por quase dez anos.

Dom Helder foi uma figura fascinante. Um crítico ferrenho da própria Igreja. Uma chama incandescente de tão humana. De uma coragem inabalável, que faz falta nesses tempos tão covardes. Uma pimenta vermelha a chamar para a briga. Uma luz de esperança para pensar o amor, o país e a vida.


Ivana Moura é jornalista, crítica cultural, pesquisadora de teatro, atriz e dramaturga. Mestra em Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Desde 2011 edita e produz conteúdo para o blog Satisfeita, Yolanda? (www.satisfeitayolanda.com.br), do qual é uma das idealizadoras. Participou de coberturas de festivais e mostras como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp (2014, 2015 e 2016), a Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo (2015), Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015) e  Bienal Internacional de Teatro da USP (2015). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.

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[Crítica] Excessos de um espetáculo ingênuo https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/excessos-de-um-espetaculo-ingenuo-2/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/excessos-de-um-espetaculo-ingenuo-2/#respond Thu, 15 Sep 2016 20:11:49 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=2258 Por Daniel Schenker

cruzar-critica

A inspiração para Cruzar la Calle veio da realidade. O dramaturgo Daniel Amaru Silva testemunhou o atropelamento de um cachorro nas ruas de Lima. Além de entrelaçar as jornadas dos personagens a partir desse fato, o autor conferiu importância à cidade. Diferentemente do cinema, no teatro o público não vê a paisagem descrita (a menos que a montagem conte com projeção de imagens – o que não é o caso e não deixa de ser um procedimento cinematográfico). Mas a ausência de imagens não impede que o espectador perceba a relevância de uma determinada geografia e pode servir como um estímulo à imaginação.

A primeira informação sobre a cidade contida nessa peça sinaliza uma rejeição: a mãe de Hector, o rapaz que assiste ao atropelamento, foi embora há muitos anos. Ele nem tem registros da presença dela, que partiu em busca de um lugar de pertencimento. Na cidade, Amaru valoriza os deslocamentos dos personagens – até o ponto de ônibus e de suas próprias casas em direção a outras moradias em travessias que cortam a cidade. Boa parte dos personagens de Cruzar la Calle mora na periferia, que não parece se restringir a uma área específica. Apesar da extensão, a periferia é abafada pelo centro mais abastado para onde costumam convergir as atenções.

Os espaços são delimitados por biombos que trazem, cada um, uma cadeira acoplada em diferente posição, o que sugere a valorização de ângulos distintos de uma mesma história, de acordo com a perspectiva de cada personagem. Os atores manipulam esses biombos, mas, durante a maior parte do tempo, o recurso não se revela eficiente na transmissão das especificidades dos espaços.

De qualquer modo, a questão espacial permanece como a característica menos atada ao lugar-comum em Cruzar la Calle, que, tanto no âmbito da dramaturgia quanto no da encenação, segue uma série de convenções. Apesar de ter vencido o Concurso Nacional Nova Dramaturgia Peruana 2014, o texto foi construído como um novelão exemplar. Amaru investe numa trama passional, movida por personagens que, apesar de ocasionalmente sinalizarem transições ou ambiguidades, permanecem previsíveis.

Hector é um rapaz obstinado que sai à procura de Tomás, o atropelador do cachorro, e, à medida que se aproxima dele, deixa de odiá-lo. Machista e ciumento, Tomás tem dificuldade de conduzir sua vida de maneira minimamente equilibrada e expressa afeto de maneira desajeitada diante da esposa, Graciela, e da filha, Elena. Generosa e abnegada, Graciela procura compensar o feito do marido ao se aproximar de Alejandro, o dono do cachorro, mergulhado na depressão após a perda do animal de estimação. Elena é uma adolescente revoltada, que não se adapta ao convívio com o pai. E Alejandro, inicialmente arisco, renasce no contato com Graciela. Amaru procura imprimir agilidade no desenvolvimento de uma trama passional que adquire tintas carregadas no desfecho, o que realça ainda mais as suas fragilidades.

No que se refere à montagem, a sobrecarga de funções de Carlos Tolentino – assina a direção, cenografia, iluminação, trilha sonora e sonoplastia – possivelmente impediu uma percepção mais rigorosa do conjunto. A luz oscila entre uma estética kitsch e uma sobriedade que delimita, de maneira esquemática, os momentos em que os atores falam diretamente ao público. A música é empregada como um acompanhamento constante, excessivo, que visa a tão-somente sublinhar os climas emocionais, enfraquecendo a cena – em especial, nos instantes marcados pela utilização da conhecida Hallelujah.

Dentro de uma linha convecional de atuação e sem contar com material dotado de complexidade, os atores (Stephanie Enríquez, Elsa Olivero, Alfonso Dibos, Rolando Reaño, Alaín Salinas) procuram imprimir credibilidade aos personagens e conseguem administrar a intensidade emocional valorizada no texto e na encenação. Mas o engajamento do elenco não é suficiente para minimizar os problemas do espetáculo. Se ao longo do primeiro ato é possível considerar a ingenuidade dos procedimentos como uma escolha, no segundo o emprego de soluções pouco teatrais se torna evidente.


Daniel Schenker é bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e da revista Preview. Escreve para os sites Teatrojornal (teatrojornal.com.br)Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. É membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio, Questão de Crítica e Reverência.

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[Crítica] Forças contrárias https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/forcas-contrarias/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/forcas-contrarias/#respond Thu, 15 Sep 2016 18:48:44 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=2250 Por Daniel Schenker

espada_luca_del_pia_1

No início de O que eu farei com esta espada? (Aproximação à lei e ao problema da beleza), espetáculo de Angélica Liddell, o público se depara com a projeção de um texto com a afirmação de que a França não dispõe de um movimento equivalente ao teatro elisabetano e ao romantismo alemão. Há, nessa frase, a exclusão do classicismo francês, proposital dentro de um trabalho que sugere, ao longo de cerca de quatro horas e meia de duração, uma oposição ao racionalismo, ao controle, à repressão.

Movimento do século XVII, o classicismo defendeu o resgate das regras que nortearam a tragédia grega como balizas fundamentais para a criação do artista. De acordo com os classicistas, o artista deveria obedecer normas previamente estipuladas, diferentemente do que havia feito William Shakespeare, o principal autor do período elisabetano, que propôs uma nova forma de escrita a partir da transgressão a leis como as unidades de tempo, lugar e ação e a divisão rígida entre tragédia e comédia. Seus textos não têm a contenção normalmente encontrada nas tragédias gregas (geralmente há muitos personagens e tramas paralelas e as histórias se desenrolam em espaços diversos) e apontam para uma fusão de gêneros.

Movimento nacionalista que surgiu na Alemanha do século XVIII, o pré-romantismo, norteado pela plataforma Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), foi marcado, ao contrário do classicismo, pela defesa da livre expressão da subjetividade do artista, pela louvação de sua genialidade. Segundo os pré-românticos, o artista deveria criar sem a obrigação de seguir à risca um modelo pré-estabelecido. Não por acaso, o movimento cultuou a dramaturgia de Shakespeare. O romantismo, mencionado na cartela inicial da encenação de Liddell, manteve as características, mas se firmou como um movimento mais urbano, menos dominado pelos arroubos da juventude.

Há citações a tragédias espalhadas pelo espetáculo de Liddell. São menções referentes tanto aos principais autores gregos – Ésquilo (Oréstia), Sófocles (Édipo Rei) e Eurípedes (Medeia) – quanto a Shakespeare – Macbeth. No que se refere às obras gregas, talvez a encenadora evoque-as com o intuito de destacar o contraste entre a forma justa, medida, controlada e os personagens que extravasam ao não conseguirem conter dentro de si impulsos proibidos. Há nessas tragédias uma oposição entre a lei coletiva e a determinação individual. O herói trágico não se curva diante do instituído. É como se obedecesse tão-somente à própria lei ou como se simplesmente não conseguisse agir de outra maneira dada a força com que determinada situação o atravessa

O que eu farei com esta espada? (Aproximação à lei e ao problema da beleza) se revela estruturado sob a tensão entre duas forças: de um lado, o controle, a precisão, a construção exata, o andamento suave, sem sobressaltos, os movimentos filigranados e calculados próprios do teatro oriental; do outro, os rompantes de agonia e êxtase de corpos ardentes, selvagens, animalizados, que imprimem energia orgiástica à cena, realçada por atuações ocasionalmente expandidas, derramadas, excessivas. O jogo de oposições é reforçado pelas imagens dos corpos, frequentemente desnudos, às vezes próximos de um modelo convencionado de beleza, às vezes distantes da forma idealizada e, nesse sentido, mais humanizados. Contudo, os dois polos não permanecem totalmente separados como se não se misturassem.

Liddell faz ainda menções contundentes ao corpo ferido, deformado, mutilado por atos de primitivo sadismo. Os limites do corpo são testados, a exemplo da cena que encerra o segundo ato, na qual um ator executa até a exaustão movimentos repetidos. Liddell deseja operar, dissecar o corpo, vê-lo por dentro. Por meio desse espetáculo, a encenadora realiza uma espécie de autoexame e expõe diante do público o lado obscuro que os indivíduos costumam esconder até de si mesmos. Evoca a realidade por meio de assassinatos – praticados por Issei Sagawa (o momento da descrição do ato de canibalismo praticado por ele, realizado pelo ator por meio de uma fala acelerada e dotada de musicalidade, é impactante), Ted Bundy e Jeffrey Dahmer – e revela estupor não pelos fatos em si, mas pelo modo amoral como se relaciona com os acontecimentos. A encenadora critica a postura politicamente correta, mas se penitencia por, tal qual uma personagem trágica, não conseguir sentir de forma mais equilibrada.

À medida que o espetáculo avança, Liddell despe o palco e dá cada vez mais vazão a um discurso transmitido em tom de pregação, o que gera desgaste, em especial na primeira metade do terceiro ato. Mas, apesar de bastante autocentrado (Liddell acumula texto, direção, atuação, cenografia e figurinos), O que eu farei com esta espada? (Aproximação à lei e ao problema da beleza) proporciona uma incômoda reflexão sobre ética.


Daniel Schenker é bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e da revista Preview. Escreve para os sites Teatrojornal (teatrojornal.com.br)Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. É membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio, Questão de Crítica e Reverência.

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[Crítica] MIRe VEJA, Mi(g)Re (E) VEJA https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/mire-veja-migre-e-veja/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/mire-veja-migre-e-veja/#respond Tue, 13 Sep 2016 21:02:50 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=1960 Por Welington Andrade

birdie

“… é teatral o que quer e pode ser teatro. Essa abordagem hegeliana e teleológica aceita, ao contrário da outra, o movimento e a contradição interna na história. Seja nostalgia de um modelo, sonho de uma essência, retraimento sobre uma especificidade, querer ou poder – desejo –, a teatralidade é falta de teatro. A modernidade concebe o teatro como falta, desejo e procura de teatro, em lugar de fazer do teatro uma arte definida e consumada”.

Geneviève Jolly e Muriel Plana, Léxico do drama moderno e contemporâneo.

Em Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna, Jonathan Crary convida à reflexão a respeito de como a arte e a cultura contemporâneas vem lidando com a categoria da percepção, desdobrada diretamente nos modos de produção da subjetividade. O professor de arte moderna e teoria da arte na Universidade de Columbia analisa as alterações significativas no regime de percepção criado pela sociedade industrial do século XIX cujos impactos se estendem aos dias de hoje. Examinando o fenômeno da urbanização acelerada vivido no Ottocento como uma conquista do capitalismo industrial, Crary detém-se sobre o problema da atenção e da subjetividade modernas a partir da relação que se estabelece entre percepção, sensibilidade, pesquisa científica e experiência estética. Os conceitos debatidos pelo autor podem migrar da esfera do século de Baudelaire e ser analisados à luz do início desse novo milênio, no qual a cultura do espetáculo tem caráter marcadamente disciplinador. “O que importa para o poder institucional, desde o final do século XIX”, afirma o autor, “é apenas que a percepção funcione de tal modo a garantir que um sujeito seja produtivo, controlável e previsível, que seja adaptável e capaz de integrar-se socialmente”.

A partir de tal enfoque, podemos afirmar que Birdie, do Agrupación Señor Serrano, da Espanha, constitui uma experiência teatral sui generis cuja grande qualidade é levar ao descondicionamento do mais hipertrofiado órgão da percepção humana – o olho – para que ele desconfie do que, a princípio, vê. Acreditamos tratar-se mesmo Birdie de uma criação teatral, uma vez que as palavras “espetáculo” e “espectador” provêm da forma latina “spectare”, que significa “olhar, observar atentamente, contemplar”, derivada, por sua vez, da forma grega “optiké”, cujo sentido é “a arte de ver, a ciência da visão”. Implicando a própria palavra “teatro” em grego a ideia de “lugar de onde se vê”, pode-se afirmar que a arte da cena, desde seu nascimento, elegeu o olho humano como sede da percepção do espectador. Assim, nada mais natural que um dos trabalhos que o grupo espanhol trouxe para este Mirada 2016 (o outro é Brickman Brando Bubble Boom – BBBB) tenha tido como ponto de partida uma imagem fotográfica. Captada em 2014 por José Palazón e rapidamente difundida na internet, ela retrata, em primeiro plano, um campo de golfe em Melilla (um enclave espanhol em território marroquino) e, em segundo plano, uma dezena de imigrantes africanos empoleirados sobre a cerca que separa aquela cidade do território do Marrocos. (À direita, é possível ver ainda um policial dirigindo-se ao grupo, anunciando uma abordagem violenta).

A leitura que se pode fazer desse instantâneo – convém lembrar, aqui mais do que nunca, que o étimo de “ler” aponta para a ideia de “colher com os olhos” – é a mais rugosa possível do ponto de vista semântico e está na base da nomeação do espetáculo. O vocábulo “birdie” pode significar em inglês tanto pássaro como um tipo de jogada no golfe. Dessa ambiguidade nascem então inúmeras outras ambivalências, estendidas ao nível da fluidez de sentidos – fruída, formalmente no espetáculo, pelo olho do espectador, que reconhece imagens de migrações humanas e animais, de aves migratórias e cenas fragmentadas de Os pássaros, de Hitchcock, editadas artesanalmente e exibidas, ora sob a narração de uma locutora que presta informações pontuais, ora ao som de uma trilha musical vibrante. Estabelecendo de modo lúdico algumas ilusões óticas dispostas a desautorizar o exercício da centralidade da visão (dependente de um olhar fixo, monocular), a experiência do Agrupación Señor Serrano nos propõe um curto-circuito perceptivo, ao nos oferecer para o (des)entendimento de nossa visão e audição uma complexa massa de estímulos, signos e materiais heterogêneos incapazes de serem reduzidos a um único sentido.

Afirma Patrice Pavis em seu Dicionário de teatro que “seja sob forma do corpo pensante, seja sob a do corpo no espírito”, “a percepção do espectador situa-se no lugar estratégico no qual ocorre a experiência teatral em sua complexidade e irredutibilidade”. Ao falar sobre migração do ponto de vista político, Birdie conduz também o espectador a um processo que podemos chamar de migração da subjetividade. Passagem de uma região ordinária, sensata, plagiária (na acepção de Roland Barthes) a um plano líquido, fluido, extraordinário – onde um sentido captado de modo subjetivo nunca fica satisfeito de estar. Pois bem, Birdie constitui um exercício de figuração em torno das ideias de migração de sentidos e de disciplina do olhar, por meio das quais os integrantes do Agrupación Señor Serrano inquirem a respeito de para onde miramos nosso olhar e o que de fato vemos.

*Welington Andrade é doutor em literatura brasileira pela USP, na área de dramaturgia. É professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero desde 1997, crítico de teatro da revista Cult e autor de um dos capítulos da História do teatro brasileiro: do modernismo às tendências contemporâneas (Editora Perspectiva/Edições Sesc-SP, 2013).

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