cia. do tijolo – Sesc Mirada https://mirada.sescsp.org.br/2016 MIRADA - Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos Tue, 31 Jan 2017 21:44:28 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.5.8 [Webdoc] O Avesso do Claustro – Cia do Tijolo https://mirada.sescsp.org.br/2016/webdoc/webdoc-o-avesso-do-claustro-cia-do-tijolo/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/webdoc/webdoc-o-avesso-do-claustro-cia-do-tijolo/#respond Thu, 29 Sep 2016 21:52:56 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=2947

Hoje é o dia que eu vou sonhar melhor!“, disse um espectador ao assistir ‘O Avesso do Claustro’.

Para eternizar o Mirada 2016, os olhares, cores, sons e sonhos do Festival são os protagonistas da série que estreamos hoje. No primeiro deles, a Cia. do Tijolo!

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[Crítica] Dom da liberdade https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/dom-da-liberdade/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/dom-da-liberdade/#respond Thu, 15 Sep 2016 20:21:57 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=2260 Por Ivana Moura

avesso

Bateu um infrequente medo de avião. Mas avistei um homem-santo que apanhava a mesma aeronave e respirei aliviada. Não vai ser desta vez que esse aparelho voador vai cair, pensei no íntimo. Isso foi no início dos anos 1990, numa das minhas primeiras viagens ao Festival de Teatro de Curitiba, saindo do Recife. Dom Helder Camara (1909-1999) dissipou o receio incomum que se apossou de mim. Sua presença naquele ambiente devolveu-me uma paz temporária, mas profunda. E olhe que, sinceramente, eu nem era fã fervorosa do Arcebispo Emérito de Olinda e Recife.

Essa passagem emergiu dos sótãos da memória durante a apresentação do espetáculo O Avesso do Claustro, da Cia do Tijolo de São Paulo, durante o Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos. A encenação incendiou-me de sentimentos nobres. Parecia que boiava em águas mornas, meu coração quente, meus olhos molhados e uma certeza que alguns homens são realmente imprescindíveis para a humanidade, seu transcurso pela Terra deixam marcas de amor… São poucos. Dom Helder Camara é um deles.

Nesses tempos tão obscuros e obtusos parece da maior importância ampliar na escala cênica a trajetória desse bispo mignon na estatura física e gigante em coragem e devoção aos homens. Um santo rebelde como se pauta o grupo para construção dessa narrativa repleta de epifanias.

O espetáculo é quase perfeito em seu organismo de compartilhamentos de afetos e desejos de dias melhores, de tempos melhores. De comunhão com sopa, vinho e guizos. Repleta de ânimos, a encenação traça paralelos da luta do Dom Helder durante o regime militar brasileiro e essa outra Idade Média que encaramos sem tantos eixos de sustentação.

Esse bispo vermelho tinha um jeito muito peculiar de resistir. De criar aliados, de defender os mais pobres. De gritar por justiça, democracia e direitos humanos pelo mundo afora sem levantar a voz. De desafiar autoridades religiosas e profanas.

A abertura do espetáculo é puro deslumbramento. E isso vai se multiplicando ao longo de mais de duas horas de apresentação. Mas esse começo já agarra pela emoção. Com uma fina cortina, que separa palco e plateia, ainda fechada, atores-cantores e os músicos dirigidos por William Guedes, com imensas saias e bustos nus, em pé sobre pequenos bancos tocam e cantam a versão de câmara da arrepiante Missa Luba –– baseada em canções tradicionais do Congo.

Essa Missa Luba foi empregada por Pier Paolo Pasolini em O Evangelho Segundo Mateus. Trechos do filme são projetados no cenário, em outro momento, como comentários do religioso sobre as figuras bíblicas e o desempenho dos atores.

Músicas litúrgicas em ritmo de maracatu fazem parte da trilha sonora original de Caique Botkay e Jonathan Silva, que são entoadas com alegria. Essa sonoridade faz trânsitos entre cenas, preenche espaços, cria climas, subverte intenções. É uma personagem estratégica na montagem.

Fé e resistência política

Na primeira fala do personagem Dom Helder da peça ele argumenta: “Afirmo para os senhores que ainda hoje, nas periferias do Brasil, Cristo se chama Zé Antônio, Amarildos, Claudias, Beneditas, Lampiões e Josés”. Pessoas que sofreram algum tipo de abuso de autoridade e agressão policial; desaparecidas, mortas ou que foram vítimas de violência. Isso já traduz a temperatura do espetáculo. Seu teor político toma posição a favor da justiça, da liberdade, da igualdade, da fraternidade, da repartição das riquezas, da luta contra qualquer barbárie, como ocorreu com seu personagem principal.

O teatro para a Cia do Tijolo assume papel engajado com seu tempo, com as causas urgentes. O Dom Helder do grupo se ergue contra os fundamentalismos disfarçados e ou desavergonhadamente ostentados por igrejas mercenárias. Se opõe às funções retrógradas da chamada BBB, a bancada da Bíblia, do Boi e da Bala. Combate a manipulação de alguns segmentos que exploram Deus. E isso é brilhantemente apresentado no discurso levado ao palco, que elenca os adesivos de carro que sustentam em seus dizeres “Presente de Deus”. À vergonhosa sessão no Congresso em que o nome de Deus foi citado para justificar sentimentos e atos mais torpes.

O religioso é interpretado de forma visceral por Dinho Lima Flor, que divide a direção com Rodrigo Mercadante. Frei Betto assina a orientação teórica do espetáculo. Os motes temporais são habilmente entrelaçados. Frente a esse personagem biográfico são colocadas três figuras fictícias, que ouvem seus poemas e histórias, dialogam com ele, e questionam as escolhas do protagonista. Suas perguntas norteiam as ações. Um pesquisador à procura de Dom Helder no Recife; uma mulher que amarga um duro cotidiano em São Paulo e uma cozinheira do Rio de Janeiro, que vive aos pés do Cristo Redentor.

Rodrigo Mercadante faz o jornalista que, na visita ao Recife. Lilian de Lima atua como a moradora que nas caminhadas noturnas reflete sobre a exclusão. Karen Menatti faz o papel da mestre-cuca habitante da Cruzada São Sebastião, no Rio e interroga a existência de Deus. Flávio Barollo circula pelo palco a projetar imagens em lugares surpreendentes. Os músicos Aloísio Oliver, Maurício Damasceno, Leandro Goulart e William Guedes, completam o elenco,

Transbordamento

O excesso narrativo da dramaturgia coletiva transborda ao buscar dar conta dessa vida tão rica e da relevância das conexões com o mundo atual. Em 170 minutos, a montagem avança como missa profana, com passos de calvário e paradas nas estações de trem. Até chegar ao apoteótico fechamento de Carnaval, que congrega bonecos gigantes de Dom Helder, Paulo Freire, Garcia Lorca e Patativa do Assaré, personalidades que estão no repertório de peças da Cia. do Tijolo: Ledores no Breu, Cantata para um Bastidor de Utopias e Concerto de Ispinho e Fulô.

A vida de Câmara é exposta de forma não linear.  Seus trejeitos dramáticos são incorporados por Dinho. Suas mudanças de opções traduzem a carne viva.  “Em cada um de nós dorme um fascista e às vezes ele nunca desperta. Às vezes, porém, ele desperta sim.” Na juventude Dom Helder foi um entusiasta do movimento integralista, os camisas-verdes do fascismo brasileiro organizado. Esse grupo enganou muito jovens com um discurso dúbio que o religioso soube enxergar mais tarde, quando se tornou-se um socialista e ganhou a alcunha de “bispo vermelho”.

Apesar do dilúvio de informações e detalhes sobre a existência do clérigo, há muito mais para ser explorado sobre esse poeta da fé, que meditava com a lógica da poesia e gostava de promover reuniões com artistas, saraus e debates abertos em pleno vigor da Ditadura. É que em 90 anos de vida ele foi extremamente ativo nos campos político, artístico e espiritual. Ele concebeu um banco para emprestar dinheiro aos pobres nos anos 1960, por exemplo. E organizou a construção de apartamentos para favelados no bairro carioca do Leblon, transformada numa cena muito potente do espetáculo.

Os relatos se seguem em cenas fortes que embaralham narrativas. Como o encontro de Dom Helder e um Papa e a crítica do Arcebispo de Olinda e Recife à opulência do papado. O assassinato do Padre Henrique como recado e condenação ao próprio Camara. A tortura de Frei Tito, que desencadeou à projeção sem trégua do seu algoz até a morte. Ou o da prostituta que perguntou ao Dom se era pecado se oferecer em sacrifício a um prisioneiro todos os anos da Sexta Santa e obteve como resposta que não era pecado.

Chama incandescente

Aquela criatura franzina amedrontava os donos do poder. Sua relação com a imprensa é explorada de forma espirituosa em várias estações: do vislumbrar do encontro com São Pedro, em que Dom Helder aguarda a imprensa, ou seu pedido para que a imprensa não esteja presente no encontro com João Goulart, quando o bispo previne sobre o golpe, e o vazamento de uma foto que se torna o estopim para prendê-lo.

Figura embaraçosa aos militares durante a ditadura, o espetáculo recupera os discursos do sacerdote que denunciou as torturas praticadas por militares brasileiros para mais de dez mil pessoas na França. Isso desencadeou a proibição de seu nome – de forma positiva ou negativa – pela Ditadura Civil-Militar por qualquer meio de comunicação por quase dez anos.

Dom Helder foi uma figura fascinante. Um crítico ferrenho da própria Igreja. Uma chama incandescente de tão humana. De uma coragem inabalável, que faz falta nesses tempos tão covardes. Uma pimenta vermelha a chamar para a briga. Uma luz de esperança para pensar o amor, o país e a vida.


Ivana Moura é jornalista, crítica cultural, pesquisadora de teatro, atriz e dramaturga. Mestra em Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Desde 2011 edita e produz conteúdo para o blog Satisfeita, Yolanda? (www.satisfeitayolanda.com.br), do qual é uma das idealizadoras. Participou de coberturas de festivais e mostras como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp (2014, 2015 e 2016), a Mostra Latino Americana de Teatro de Grupo (2015), Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015) e  Bienal Internacional de Teatro da USP (2015). Integra a DocumentaCena – Plataforma de Crítica e a Associação Internacional de Críticos de Teatro – AICT-IACT, filiada à Unesco.

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[Crítica] Evocação de Dom Helder https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/evocacao-de-dom-helder/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/evocacao-de-dom-helder/#respond Tue, 13 Sep 2016 14:50:51 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=1914 o-avesso-do-claustro_cred-alecio-cezar

por Welington Andrade

“Claro que dirão, Mariama, que é política, é subversão, é comunismo.
É Evangelho de Cristo, Mariama!”.
Dom Helder Câmara, Invocação à Mariama.

Em O avesso do claustro, a Cia. do Tijolo, sediada em São Paulo, dá prosseguimento ao misto de teatro, recital e cerimônia cívica que vem marcando a trajetória do grupo desde sua fundação em 2008. Depois de se debruçarem sobre Patativa do Assaré (Cante lá que eu canto cá e Concerto de Ispinho e Fulô), Federico Garcia Lorca (Cantata para um bastidor de utopias) e Paulo Freire (Ledores no breu), os integrantes da companhia escolheram tratar de Dom Helder Câmara (1909-1989), “emblemático personagem nas históricas lutas de resistência política durante o regime militar e na aproximação da igreja católica com as demandas dos movimentos sociais”, segundo eles próprios declaram no catálogo completo deste Mirada 2016. O resultado é um espetáculo em que o teatro, a música e a poesia se associam íntima e estruturalmente, convergindo para um tipo de ato cultural e político de longa filiação histórica entre nós, brasileiros, embora cinicamente mantido como invisível ou mesmo inexistente nos dias de hoje.

Três são os níveis discursivos da dramaturgia (assinada coletivamente), realçados pela direção exercida por Dinho Lima Flor em parceria com Rodrigo Mercadante e pontuados de maneira toda especial pela direção musical a cargo de William Guedes: o epos, o ethos e o pathos. No plano épico, a história pessoal do arcebispo de Olinda e Recife é contada de modo a dar sustentação a um panorama histórico do Brasil no século XX, com especial destaque para os anos de chumbo da ditadura militar que vigorou entre 1964 e 1985, período que parece sintetizar o peculiar amálgama entre atraso e progresso vivido em todo nosso Novecento e que os acontecimentos mais recentes da vida pública nacional mostram não ter sido superado de todo ainda, para a perplexidade geral. Mas epicamente também o itinerário histórico de Dom Helder se liga ao mito de Abrahão, povoador do mundo judaico-cristão, neto de um só Adão, mas avô dos incontáveis severinos que na peça estão representados pelo carrinho de pedreiro, pela escada de madeira e pelos tijolos manuseados por quem vive em lugares em que as bênçãos bíblicas são pura ironia, como a Vila das Belezas, a Consolação e a Estação da Luz.  

A estrutura narrativa espraia-se por três centros organizadores: o de um pesquisador leigo que, nos dias atuais, vai a Olinda para conhecer mais de perto a trajetória de “bispo vermelho”; o de uma moradora da periferia de São Paulo, que, igualmente nos dias de hoje, padece do descaso com os pobres contra o qual Dom Helder sempre lutou; e o de uma cozinheira que conviveu com o religioso, na década de 1950, na Cruzada São Sebastião, conjunto de habitação popular encravado no Jardim de Alá, no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, erguido em caráter de mutirão por iniciativa do então secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Uma das grandes qualidades da dramaturgia é a de fazer o plano épico-narrativo desdobrar-se na esfera épica-dialética do teatro político, que vem dando inúmeros frutos nas últimas décadas e remonta ao trabalho de Bertolt Brecht, na Alemanha, e ao do Teatro de Arena de Augusto Boal e Oduvaldo Viana Filho, no Brasil. É por essa via que os três centros narrativos se entrecruzam uns com os outros (insistindo sempre no apagamento de marcas essencialmente dramáticas) e dialogam com a estrutura maior de enunciação do espetáculo. O avesso do claustro, já assumindo o sentido de contrariedade presente em seu título, é uma criação que se deixa atrair fortemente pela figura de um homem religioso para simultaneamente questionar o poder que a religiosidade exerce sobre os indivíduos e até mesmo a existência de Deus. Evocando ainda que de modo difuso a Missa leiga (1973), de Chico de Assis, a Cia. do Tijolo declara encenar uma “missa profana”, cujos efeitos sobre o artesanato do espírito do espectador são inversamente proporcionais à dessacralização que o espetáculo opera dos modos de espiritualidade cristã produzidos em escala industrial na vida moderna – deliciosamente revertidos nas canções cujos motes são “Se Deus existe, eu não sei” e “O que é o altar?”.  

Assim, chega-se ao segundo plano dramatúrgico, o das implicações éticas pelas quais o trabalho deixa-se briosamente atravessar. Quão menos eclesiástico, no sentido institucional do termo, Dom Helder se apresenta em cena, mais ético ele parece ser. Eis aí uma bela lição a ser dada a todo e qualquer cristão que jamais faz de sua fé um ato de risco, praticando o bem somente “por interesse” e recusando o mal unicamente “por medo”, como uma das atrizes causticamente declara em cena. As entidades cristãs em que Dom Helder acreditava não exerciam as marcas de tirania de que a Igreja sempre se serviu para controlar seus fiéis (sobretudo os mais pobres) e adular os poderosos. O deus pelo qual ele lutou era uma entidade telúrica, imaginativa e carnavalesca (embalada até mesmo por um samba de Noel), extravagante não somente por presidir a tudo sem reivindicar poder sobre nada, como também por legislar veementemente pelo exercício de uma reversão paródica de alto teor político (base dos festejos de Momo), que faz quedar os súperos e ascender os humildes. Não é de se estranhar que um bispo que tenha feito a opção preferencial pelos pobres, motivado única e exclusivamente pelo senso ético desenvolvido nos primórdios do cristianismo, tenha sido combatido ao longo de toda sua vida pela grande imprensa, a opinião pública e os governos mais conservadores.

O ethos trata também do caráter assumido pelo discurso da peça cujo objetivo é o de conquistar a afinidade do público para a causa que ela apresenta, demonstrando a credibilidade de que goza esta criação por intermédio da crença que ela professa em um projeto comum. Assim, o teatro de matriz épica procura converter a experiência cênica em experiência cívica, irmanando atores e plateia em um ato de comunhão política. Se, nas décadas de 1960 e 1970 – em que se concentra grande parte da narrativa da peça –, a arte concebida no Brasil utilizou-se desse convite feito à “participação cívica” da plateia (categoria estudada com muita propriedade por Roland Barthes, no cenário internacional, e por Heloisa Buarque de Holanda, no âmbito brasileiro), nos tumultuados e vertiginosos dias atuais, a prontidão ética de O avesso do claustro constitui um atualíssimo e irônico exercício de anacronismo. Festa e devoção então se misturam não somente no ritual de lava-pés celebrado ao som do chorinho Pedacinhos do céu, de Waldir Azevedo, como também na profana ceia de sopa e vinho que o segue, servida pouco depois da metade do espetáculo.

O terceiro e último plano – o pathos – é certamente o mais complexo do espetáculo, sobre o qual, inclusive, é muito fácil emitir opiniões ajuizadas e bem-pensantes, dentro de uma lógica pós-moderna, naturalmente. A despeito de lidarem tão bem com a matéria dialética, os intérpretes se deixam contaminar do início ao fim da empreitada por uma penetrante e assídua emoção. Dinho Lima Flor assume com muita propriedade a máscara patética de um bispo folgazão, meio Pedro Malazarte, meio João Grilo, que converte a firmeza de caráter de Dom Helder em franca simpatia; Rodrigo Mercadante encarna por meio de sua voz e corpo inervados a dúvida metódica que persegue seu pesquisador e contamina sua atuação de uma energia irrefreável (a cena em que ele transita dos trechos do manifesto integralista a fragmentos dos discursos de nossos congressistas em favor do impeachment de Dilma Roussef é de uma contundência acachapante; Lilian de Lima confere à andarilha paulistana uma aura de dignidade resultante da expressão de sua bela voz e de seu firme trabalho corporal, dando plasticidade a um tipo humano doído, e fascinante; Karen Menatti também explora a dignidade de sua cozinheira, mas, contrariamente à força que emana da atuação de Lilian, ela o faz pela via de uma tênue vulnerabilidade de tipo lírico. (Registre-se também sua bela voz. E seu comovente depoimento a respeito do ferimento sofrido em recente manifestação contra o governo Temer em São Paulo). Integra o elenco ainda Flávio Barollo, atuando nas composições corais e na projeção dos vídeos realizados por ele próprio.

O estilo de atuação da Cia. do Tijolo alia o tom de declaração pessoal de cada um dos intérpretes ao modo desabrido como cada um deles se lança a um caldo de emoções no qual a plateia dificilmente deixa de mergulhar. Da aura das singularidades e das idiossincrasias passa-se então a uma atmosfera de pathos social habilmente construída. “Popularesca”, dirão os estetas; “populista”, chamarão os cínicos; “popular” intuirão os conhecedores da alma latina. A verdade é que as perguntas que cada atuador se faz – “Quem me ouviria” e “O que é que vai por dentro?” – são dirigidas a cada um de nós, por meio de uma partilha de subjetividades que se tocam e se reconhecem como mútuas.

A música em O avesso do claustro é uma linguagem absolutamente integrada à cena, ora realçando certos elementos narrativos especiais, ora dizendo aquilo que a palavra dos atores simplesmente não consegue expressar, por estar tangido por um tipo de lirismo incompreensível à fala humana. Maurício Damasceno, William Guedes, Clara Kok Martins, Eva Figueiredo e Leandro Goulart se encarregam de criar uma ambiência melódica e rítmica que transita – como seria de se esperar – entre o sagrado e o profano. Sambas, maracatus e bossas interagem com kyries eleisons, hosanas nas alturas e laudamus te benedictus precipitando-se em uma massa sonora que concretiza, tematicamente, a forma do espetáculo.

Questionar a existência de um deus institucionalizado e a íntima relação dessa existência com os poderes mundanos constituídos talvez seja o objetivo maior de um espetáculo que denuncia a escuridão dos claustros (onde “tudo está sempre tão escuro”) e propõe sua reversão por meio da luminosidade da arte e da ética humanística que sempre lhe serviu de esteio. Com a luz lançada pelo teatro, pela música e pela poesia é possível também nos embriagarmos, parece nos dizer a Cia. do Tijolo, fazendo coro com Dom Helder Câmara, ao nos advertir de que é possível deixarmos de nos inebriar somente com nossa própria mediocridade.

*Welington Andrade é doutor em literatura brasileira pela USP, na área de dramaturgia. É professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero desde 1997, crítico de teatro da revista Cult e autor de um dos capítulos da História do teatro brasileiro: do modernismo às tendências contemporâneas (Editora Perspectiva/Edições Sesc-SP, 2013).

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