angélicaliddell – Sesc Mirada https://mirada.sescsp.org.br/2016 MIRADA - Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos Tue, 31 Jan 2017 21:44:28 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.5.8 [Crítica] Forças contrárias https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/forcas-contrarias/ https://mirada.sescsp.org.br/2016/critica/forcas-contrarias/#respond Thu, 15 Sep 2016 18:48:44 +0000 https://mirada.sescsp.org.br/2016/?p=2250 Por Daniel Schenker

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No início de O que eu farei com esta espada? (Aproximação à lei e ao problema da beleza), espetáculo de Angélica Liddell, o público se depara com a projeção de um texto com a afirmação de que a França não dispõe de um movimento equivalente ao teatro elisabetano e ao romantismo alemão. Há, nessa frase, a exclusão do classicismo francês, proposital dentro de um trabalho que sugere, ao longo de cerca de quatro horas e meia de duração, uma oposição ao racionalismo, ao controle, à repressão.

Movimento do século XVII, o classicismo defendeu o resgate das regras que nortearam a tragédia grega como balizas fundamentais para a criação do artista. De acordo com os classicistas, o artista deveria obedecer normas previamente estipuladas, diferentemente do que havia feito William Shakespeare, o principal autor do período elisabetano, que propôs uma nova forma de escrita a partir da transgressão a leis como as unidades de tempo, lugar e ação e a divisão rígida entre tragédia e comédia. Seus textos não têm a contenção normalmente encontrada nas tragédias gregas (geralmente há muitos personagens e tramas paralelas e as histórias se desenrolam em espaços diversos) e apontam para uma fusão de gêneros.

Movimento nacionalista que surgiu na Alemanha do século XVIII, o pré-romantismo, norteado pela plataforma Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), foi marcado, ao contrário do classicismo, pela defesa da livre expressão da subjetividade do artista, pela louvação de sua genialidade. Segundo os pré-românticos, o artista deveria criar sem a obrigação de seguir à risca um modelo pré-estabelecido. Não por acaso, o movimento cultuou a dramaturgia de Shakespeare. O romantismo, mencionado na cartela inicial da encenação de Liddell, manteve as características, mas se firmou como um movimento mais urbano, menos dominado pelos arroubos da juventude.

Há citações a tragédias espalhadas pelo espetáculo de Liddell. São menções referentes tanto aos principais autores gregos – Ésquilo (Oréstia), Sófocles (Édipo Rei) e Eurípedes (Medeia) – quanto a Shakespeare – Macbeth. No que se refere às obras gregas, talvez a encenadora evoque-as com o intuito de destacar o contraste entre a forma justa, medida, controlada e os personagens que extravasam ao não conseguirem conter dentro de si impulsos proibidos. Há nessas tragédias uma oposição entre a lei coletiva e a determinação individual. O herói trágico não se curva diante do instituído. É como se obedecesse tão-somente à própria lei ou como se simplesmente não conseguisse agir de outra maneira dada a força com que determinada situação o atravessa

O que eu farei com esta espada? (Aproximação à lei e ao problema da beleza) se revela estruturado sob a tensão entre duas forças: de um lado, o controle, a precisão, a construção exata, o andamento suave, sem sobressaltos, os movimentos filigranados e calculados próprios do teatro oriental; do outro, os rompantes de agonia e êxtase de corpos ardentes, selvagens, animalizados, que imprimem energia orgiástica à cena, realçada por atuações ocasionalmente expandidas, derramadas, excessivas. O jogo de oposições é reforçado pelas imagens dos corpos, frequentemente desnudos, às vezes próximos de um modelo convencionado de beleza, às vezes distantes da forma idealizada e, nesse sentido, mais humanizados. Contudo, os dois polos não permanecem totalmente separados como se não se misturassem.

Liddell faz ainda menções contundentes ao corpo ferido, deformado, mutilado por atos de primitivo sadismo. Os limites do corpo são testados, a exemplo da cena que encerra o segundo ato, na qual um ator executa até a exaustão movimentos repetidos. Liddell deseja operar, dissecar o corpo, vê-lo por dentro. Por meio desse espetáculo, a encenadora realiza uma espécie de autoexame e expõe diante do público o lado obscuro que os indivíduos costumam esconder até de si mesmos. Evoca a realidade por meio de assassinatos – praticados por Issei Sagawa (o momento da descrição do ato de canibalismo praticado por ele, realizado pelo ator por meio de uma fala acelerada e dotada de musicalidade, é impactante), Ted Bundy e Jeffrey Dahmer – e revela estupor não pelos fatos em si, mas pelo modo amoral como se relaciona com os acontecimentos. A encenadora critica a postura politicamente correta, mas se penitencia por, tal qual uma personagem trágica, não conseguir sentir de forma mais equilibrada.

À medida que o espetáculo avança, Liddell despe o palco e dá cada vez mais vazão a um discurso transmitido em tom de pregação, o que gera desgaste, em especial na primeira metade do terceiro ato. Mas, apesar de bastante autocentrado (Liddell acumula texto, direção, atuação, cenografia e figurinos), O que eu farei com esta espada? (Aproximação à lei e ao problema da beleza) proporciona uma incômoda reflexão sobre ética.


Daniel Schenker é bacharel em Comunicação Social pela Faculdade da Cidade. É doutor em artes cênicas pelo Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UniRio. Trabalha como colaborador dos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo e da revista Preview. Escreve para os sites Teatrojornal (teatrojornal.com.br)Críticos (criticos.com.br) e para o blog danielschenker.wordpress.com. É membro do júri dos prêmios da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Cesgranrio, Questão de Crítica e Reverência.

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